domingo, 27 de maio de 2012

O perigo das alturas.

Profissionais ou amadores, alpinistas de grandes altitudes sabem bem os riscos que correm ao praticar o esporte; a maioria, porém, desconhece os danos que o ar rarefeito pode causar ao cérebro.


No final dos anos 1890, em um laboratório a 4.554 metros de altitude, num pico da cadeia de Monte Rosa, nos Alpes italianos, o fisiologista Angelo Mosso fez a primeira observação direta dos efeitos da altitude elevada no cérebro humano. Mosso examinou, a olho nu, a caixa craniana de um homem cujo cérebro havia sido parcialmente exposto em um acidente e registrou mudanças em sua intumescência e pulsação.

Recentemente, foi feita uma nova experiência, utilizando técnicas não-invasivas de imageamento cerebral. Para aqueles que, como eu, gostam de escalar, os resultados não foram animadores. O neurologista Nicolás Fayed e seus colegas de Zaragoza, na Espanha, fizeram um rastreamento, com ressonância magnética, em 35 montanhistas (12 profissionais e 23 amadores) que haviam retornado de expedições a picos de grandes altitudes. Entre eles, 13 haviam tentado escalar o Everest. Os resultados apontaram que os alpinistas de grandes altitudes – sejam esportistas de fim de semana ou profissionais experientes – ao voltar de sua aventura apresentam algum tipo de dano cerebral.

EFEITOS DURADOUROS
Embora a tolerância de uma pessoa à hipoxia (falta de oxigênio) varie de acordo com o condicionamento psicológico e físico inato, nenhum alpinista está imune a ela. Seus efeitos podem ser agudos, afetando o cérebro apenas durante a escalada em alta altitude ou duradouros, como apontou o estudo de Fayed.

O primeiro estágio é chamado de mal-das-montanhas agudo. Pode causar dor de cabeça, insônia, tontura, fadiga, náusea e vômitos. Na fase seguinte, mais séria, surge o edema cerebral de alta altitude, também conhecido pela sigla hace (em inglês, high altitude cerebral edema), um inchaço do cérebro que pode levar a pessoa à morte. Um montanhista com hace pode sofrer amnésia, confusão mental, alucinações, distúrbio emocional, mudanças de personalidade e perda de consciência.

A falta de oxigênio costuma danificar diretamente células do cérebro. Além disso, as paredes de vasos capilares começam a vazar em altas atitudes e o fluido pode causar um dilatamento perigoso, pressionando o cérebro para fora, contra a rígida caixa craniana. Algumas vezes os nervos óticos se dilatam tanto que incham atrás dos olhos, prejudicando a visão e causando hemorragias retinais. Enquanto isso, o sangue concentrado pela desidratação e engrossado pelo número crescente de células sangüíneas vermelhas, coagula com maior facilidade. Essa coagulação, junto com a hemorragia dos capilares afinados, pode causar um acidente vascular cerebral (AVC).

Sabe-se há muito tempo que casos mais graves do mal-das-montanhas agudo em grandes altitudes causam dano cerebral. Mas uma das constatações mais sombrias do estudo de Fayed é que, mesmo quando os alpinistas não mostram sinais de mal agudo, os rastreamentos indicam algum tipo de dano cerebral.

Os resultados dos exames nos cérebros dos montanhistas do Everest foram os mais severos. Dos 13 esportistas, três tinham alcançado o topo, de 8.848 metros; três, os 8.100 metros e sete haviam atingido entre 6.500 e 7.500 metros. Apenas um alpinista amador apresentou sinais suaves de mal agudo e lesões subcorticais nos lobos frontais; os outros 12 montanhistas profissionais não aparentavam qualquer indício de problema cerebral. No entanto, do total de 35 alpinistas examinados, apenas um profissional voltou com uma varredura normal do cérebro. As varreduras de todos os outros mostraram atrofia cortical ou alargamentos dos espaços Vichow-Robin (VR) – espaços que cercam os vasos sangüíneos, drenam fluido sangüíneo e se comunicam com o sistema linfático. O alargamento desses espaços VR é observado em idosos, mas raramente em jovens.

Fayed e seus colegas estudaram também uma equipe de oito pessoas que tentou escalar o Aconcágua, um pico de 6.962 metros nos Andes argentinos. Dois deles chegaram ao topo, cinco ficaram entre 6.000 e 6.400 metros e um chegou a 5.500 metros. No entanto, três membros experimentaram o mal-das-montanhas agudo e dois mostraram sintomas de edema cerebral – provavelmente porque subiram mais rápido que os escaladores do Everest.

Todos os oito que subiram o Aconcágua mostraram atrofia cortical em varredura de ressonância magnética. Sete mostraram espaços VR alargados, e quatro numerosas lesões subcorticais. Alguns nem precisaram de varredura para saber que seus cérebros haviam sido feridos. Um sofria de afasia (problemas de fala), da qual se recuperou seis meses depois. Dois reclamaram de perda passageira de memória depois do retorno, e outros três lutaram contra a bradipsiquia (função mental lenta).

CHANCES DE RECUPERAÇÃO
O corpo recupera-se dessas feridas das montanhas? Para responder a essa questão, os pesquisadores examinaram os mesmos alpinistas três anos depois da expedição ao Aconcágua, sem qualquer outra escalada de alta altitude de permeio. Em todos os casos, o dano era ainda aparente num segundo conjunto de varreduras. O Mont Blanc, nos Alpes ocidentais, é menor. Seu pico de 4.810 metros é escalado todos os anos por milhares de montanhistas que provavelmente não esperam danos a seu “segundo órgão favorito”, usando a nomenclatura de Woody Allen para o cérebro. Mas os pesquisadores descobriram que de sete montanhistas que chegaram ao topo do Mont Blanc, dois voltaram com espaços VR alargados.

O estudo sugere que a exposição a altas altitudes não é um requisito para experimentar dano cerebral irreversível. Na verdade, amadores parecem correr maior risco, por terem maior probabilidade de sofrer mal-das-montanhas agudo ou edema cerebral provocado por grande altitude. Ao mesmo tempo, a experiência necessária para se tornar bem aclimatado, caso do profissional com prática no esporte, parece ter um peso cumulativo sempre crescente. Se comparados aos amadores, os montanhistas profissionais avaliados nesse estudo de Fayed apresentavam atrofia cortical mais pronunciada; sentiam-se mais fortes, mas mostraram maior dano cerebral.

O alpinismo pode ser uma experiência marcante, uma comunhão com a natureza e com amigos, traz recompensas intensas e duradouras que ultrapassam aquelas encontradas nos limites da rotina, além da aventura e do desafio que produzem coragem, resistência e firmeza. Cerca de 5.000 montanhistas escalam os picos do Himalaia todo ano. Outros milhares sobem os Alpes e os Andes. Muitos gastam fortunas para montar expedições ou ser guiados até o topo. Toda essa aventura, porém, pode estar saindo caro e os montanhistas pagando com algo mais que o dinheiro pelo privilégio. Estão pagando com tecido cerebral.

Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/o_perigo_das_alturas.html

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