Os neurocientistas já sabiam que uma boa noite de sono, ou até mesmo um cochilo, faz bem à cognição e favorece soluções criativas para problemas difíceis. Uma pesquisa recente acaba de mostrar que uma fase específica do sono – REM (sigla em inglês para “movimento rápido dos olhos”) – está diretamente envolvida nesse processo e atua na formação de redes associativas no cérebro. O REM também conhecido como sono paradoxal é a fase caracterizada pela presença de sonhos e maior atividade neuronal do que a fase não-REM. O estudo coordenado por Sara Mednick, da Universidade da Califórnia em San Diego, será publicado essa semana no site e em breve na edição impressa da revista Proceedings of the National Academy of Sciences.
Mulher dormindo, s/d, óleo sobre tela de Franciszek Żmurko (1859–1910)
“Verificamos que, para questões ligadas ao que a pessoa está trabalhando no momento, a passagem do tempo é suficiente para encontrar as soluções. Entretanto, para novos problemas, apenas o sono REM é capaz de aumentar a criatividade”, disse a autora. Segundo ela, aparentemente o sono REM ajuda a chegar a soluções por meio do estímulo de redes associativas, permitindo que o cérebro estabeleça ligações novas e úteis entre ideias não relacionadas. Outro ponto importante é que essa característica não seria por conta de melhorias na memória seletiva.
Para identificar se as melhoras eram devidas ao sono ou simplesmente à redução de interferências – uma vez que experiências durante o período acordado interferem na consolidação da memória –, os pesquisadores compararam períodos de sono com de descanso controlado sem qualquer estímulo verbal. Aos participantes do estudo foram apresentados múltiplos grupos de três palavras e eles tiveram que falar uma quarta palavra que poderia ser associada com as demais. Foram feitos testes pela manhã e no fim do dia, com os voluntários divididos entre três grupos: o primeiro que dormiu à tarde e atingiu o sono REM, outro que dormiu, mas não atingiu essa fase e um terceiro que ficou em descanso sem dormir.
Segundo o estudo, o primeiro grupo apresentou um aproveitamento 40% melhor nos testes feitos após o período de sono, enquanto os demais não mostraram resultados diferenciados. Os pesquisadores sugerem que a formação de redes associativas a partir de informações previamente não relacionadas no cérebro, que levam à solução criativa de problemas, seria facilitada por mudanças nos sistemas neurotransmissores durante a fase de sono REM. (Com informação da Agência Fapesp)
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/sono_sonhos_e_criatividade.html
domingo, 14 de abril de 2013
Reparos secretos durante o sono.
Dormir “afrouxa” conexões neurais e restitui ao sistema cerebral um estado mais saudável.
Vivemos numa sociedade que a todo o momento nos convida à vigília. Obrigações, demandas de trabalho e opções de diversão não faltam. São tantas as possibilidades de distração que muitas vezes dormir parece um desperdício – é como se, em comparação com a urgência imposta pela vigília, o sono fosse enfadonhoe improdutivo. De fato, o cérebro adormecido não prepara projetos para apresentar na reunião na empresa nem responde à lista atrasada de e-mails. Exceto durante os sonhos, nesse estado ninguém tampouco ama, planeja as próximas ferias ou realiza muita coisa que cause admiração. No entanto, é justamente durante as horas tranquilas, enquanto a mente está em repouso, que o cérebro faz o trabalho essencial para todos os atos criativos: edita a si mesmo. Guarda o que pode ser útil e também joga muita coisa fora.
Em sua nova teoria sobre a finalidade do sono, o neurocientista Giulio Tononi, pesquisador da Universidade de Wisconsin-Madison, propõe que dormir para registrar o que aprendemos também pode estimular o enfraquecimento de conexões cerebrais. Seus estudos sugerem que, conforme a mente consciente se acomoda no sono, as ligações neurais que criam sustentação para o conhecimento parcialmente “se soltam”. Embora esse desmantelamento noturno possa parecer, à primeira vista, um ato de autossabotagem cerebral, o neurocientista acredita que, na verdade, trata-se de um mecanismo que melhora a capacidade do cérebro de codificar e armazenar novas informações.
Os benefícios do sono para o aprendizado e a memória são amplamente aceitos na comunidade científica. Segundo a visão predominante, as lembranças recém-formadas são repetidas durante o sono e, durante esse processo, são registradas de forma mais intensa. No entanto, de acordo com Tononi, ao unir essas memórias, os circuitos neurais podem ser fortalecidos somente algumas vezes até chegar a sua força máxima. Ele e seus colegas reuniram evidências de que o sono também serve como um botão de reset que, de maneira uniforme, afrouxa conexões neurais para colocar o cérebro de volta em um estado flexível para que a aprendizagem possa ter lugar.
A teoria é controversa. Alguns pesquisadores do sono consideram o resultado ainda muito preliminar e apresentam a hipótese de que o sono seja um momento de consolidação e reforço da memória. Ainda assim, se Tononi estiver certo, dormir pode não ser apenas organizar memórias do passado recente – mas também garantir espaço para as memórias de experiências ainda não vividas.
A aprendizagem ocorre quando uma experiência, como ouvir uma nova música ou andar por uma cidade desconhecida, por exemplo, impõe um padrão de atividade em grupos de neurônios. A experiência altera interconexões de células: ligações entre neurônios coativos se fortificam enquanto aquelas fora do movimento se enfraquecem. Assim, as células se tornam interligadas de maneira funcional. Esta trama dedica-se a preservar um fragmento específico da experiência: a memória. Mais tarde, durante períodos “desligados” – particularmente quando estamos dormindo – o padrão registrado pela experiência se repete, conduzindo a alterações celulares que estabilizam o processo.
Embora grande parte dos pesquisadores conceba o sono como essa recapitulação de aprendizagem durante o dia, Tononi enxerga um problema em potencial nessa hipótese: se as ligações entre neurônios, as sinapses, fossem reajustadas e fortificadas ao longo de dias e noites consecutivas, as células neurais se tornariam “saturadas”. Assim como acontece com os pixels de uma imagem muito brilhante, um conjunto de sinapses uniformes potencializadas forneceria pouca informação. Da mesma forma, um cérebro nessas condições não teria como armazenar novas experiências.
Tononi também observou algumas propriedades interessantes das ondas cerebrais que ele e outros pesquisadores haviam registrado em pessoas dormindo. Cientistas há muito tempo sabem que as “ondas lentas” do sono – fase de descanso profundo em que fica mais difícil despertar – são necessárias e restauradoras. Mesmo assim, dois fenômenos específicos ainda chamavam a atenção de Tononi. Primeiro, ele identificou que pessoas privadas do sono de ondas lentas tendem a compensar o período com turnos mais longos e intensos desse tipo de sono mais tarde.
Além disso, o neurocientista notou que a intensidade do sono profundo – medida como amplitude em gravações de ondas cerebrais – cessa conforme a noite avança. Ambas as observações lhe forneceram exemplos de homeostase (a alternância de forças opostas para manter o equilíbrio do sistema biológico). O sono de ondas lentas parece “puxar” o cérebro de volta a algum tipo de equilíbrio que a vigília havia perturbado.
Tononi procurou desvendar o processo biológico que embasa as mudanças no sono de ondas lentas. Ele sabia que sua intensidade estava relacionada com a força total das sinapses. Quando os neurônios disparam em conjunto, conduzem grupos de conexões neurais à ativação em sincronia. A corrente elétrica que flui através das células neurais cria o sinal de ondas lentas (gravado com eletrodos implantados no couro cabeludo). Tononi acredita que estar acordado pode levar a uma proliferação ou ao reforço de sinapses e que a intensidade inicial elevada do sono de ondas lentas reflete essas redes celulares fortificadas. Se de alguma forma as sinapses se rompem durante este período de sono, este enfraquecimento poderia explicar por que os sinais do sono diminuem ao longo da noite.
Para embasar sua hipótese – apelidada por ele de “homeostase sináptica” – Tononi observou diretamente como as conexões se alteram entre o sono e a vigília. Em um estudo publicado em 2008, o neurocientista e seus colaboradores colheram tecido cerebral de alguns ratos em vigília e de outros animais enquanto dormiam. Para cada amostra de tecido, os pesquisadores usaram anticorpos radioativos para, de maneira seletiva, marcar várias proteínas que existem apenas nas sinapses. Curiosamente, eles encontraram quantidade significativamente maior de proteínas nos ratos acordados do que nos animais em repouso. Conclusão: existem menos sinapses no cérebro adormecido, ou seja, nessa condição as conexões têm menos recursos para comunicação eficaz – isto é, são mais fracas.
A hipótese ganha força com outro estudo publicado em 2010 pelo cientista Xiao-Bing Gao e seus colegas da Universidade Yale. Em colaboração com Tononi, a equipe de Gao gravou a atividade elétrica de neurônios individuais em fatias de tecido cerebral de roedores cochilando e em alerta. Constantemente, os neurônios se comunicam entre si por meio de pequenas correntes elétricas transportadas por meio das sinapses. Quanto mais intensa for a corrente que flui através delas, mais fortes serão as conexões. Os neurônios de roedores previamente acordados demonstraram descarga elétrica mais rápida e vigorosa do que a de animais em repouso, indicando que enquanto o cérebro dorme, os neurônios têm conexões sinápticas mais tênues. Os resultados sugerem que o cérebro alterna estados de ligações entre células neurais fracas e fortes durante o ciclo dia-noite.
MOSCAS SONOLENTAS
Se enquanto nos entregamos aos baços de Morfeu as sinapses são remodeladas, os pesquisadores devem ser capazes de ver os sinais estruturais dessas mudanças. As conexões através das quais os neurônios se comunicam podem variar em número e tamanho. Em geral, quanto maior a quantidade e o tamanho das sinapses, mais “informações elétricas” podem viajar entre dois neurônios conectados.
Os cientistas podem visualizar sinapses deixando marcas fluorescentes nas proteínas que trabalham em ambos os lados da fenda sináptica. Em 2011, Tononi e os neurocientistas de Wisconsin, Daniel Bushey e Chiara Cirelli, relataram o uso dessas técnicas para controlar o tamanho e o número de sinapses em moscas-das-frutas. Eles forçaram algumas moscas a ficarem acordadas, colocando-as em uma caixa giratória – na parte superior da rotação, os insetos sonolentos cairiam e acordariam – para verificar se protelar o sono impediria o encolhimento e a retração de sinapses. Surpreendentemente, de acordo com a hipótese de Tononi, os pesquisadores observaram maior densidade e tamanho de sinapses – em alguns casos, duas vezes maiores – no cérebro das moscas que haviam sido forçadas a permanecer acordadas em comparação com as moscas em repouso.
Em um estudo ainda mais recente, Tononi e sua equipe estenderam esses resultados a ratos. Ao rotular neurônios do córtex do cérebro desses mamíferos com indicadores fluorescentes, os pesquisadores observaram o crescimento e a retração de espinhas sinápticas – minúsculas protuberâncias arredondadas nos neurônios onde ocorrem as sinapses. Eles verificaram que a densidade total de conexões aumentou com a vigília, manteve-se elevada enquanto os animais estavam privados de sono e diminuiu somente após dormirem.
TÔNICO PARA ADORMECER
Antes que a homeostase sináptica possa ser considerada o principal motivo para dormir, os pesquisadores precisam encontrar maiores evidências de que algum aspecto ensurável da função neural – aprendizagem, memória ou percepção, por exemplo – é melhorado pela diminuição de sinapses e comprometido quando essas atividades são de alguma forma restringidas. Porém, há consenso de que não será fácil demonstrar essas provas.
Intuitivamente, sabemos que dormir é restaurador; muitas metáforas tentaram capturar esta ideia. O sono é um tônico, um bálsamo. A sabedoria popular afirma: “Nada como uma boa noite de sono entre um dia e outro”. “Dorme que passa...” Ou, como disse Shakespeare, dormir “entrelaça com cuidado os fios separados e cortados”. Ele não podia saber que o sono nos renova desfazendo no cérebro as malhas entrelaçadas durante o dia para que possamos viver e aprender novamente. Mas, de alguma forma, intuía.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/reparos_secretos_durante_o_sono.html
Vivemos numa sociedade que a todo o momento nos convida à vigília. Obrigações, demandas de trabalho e opções de diversão não faltam. São tantas as possibilidades de distração que muitas vezes dormir parece um desperdício – é como se, em comparação com a urgência imposta pela vigília, o sono fosse enfadonhoe improdutivo. De fato, o cérebro adormecido não prepara projetos para apresentar na reunião na empresa nem responde à lista atrasada de e-mails. Exceto durante os sonhos, nesse estado ninguém tampouco ama, planeja as próximas ferias ou realiza muita coisa que cause admiração. No entanto, é justamente durante as horas tranquilas, enquanto a mente está em repouso, que o cérebro faz o trabalho essencial para todos os atos criativos: edita a si mesmo. Guarda o que pode ser útil e também joga muita coisa fora.
Em sua nova teoria sobre a finalidade do sono, o neurocientista Giulio Tononi, pesquisador da Universidade de Wisconsin-Madison, propõe que dormir para registrar o que aprendemos também pode estimular o enfraquecimento de conexões cerebrais. Seus estudos sugerem que, conforme a mente consciente se acomoda no sono, as ligações neurais que criam sustentação para o conhecimento parcialmente “se soltam”. Embora esse desmantelamento noturno possa parecer, à primeira vista, um ato de autossabotagem cerebral, o neurocientista acredita que, na verdade, trata-se de um mecanismo que melhora a capacidade do cérebro de codificar e armazenar novas informações.
Os benefícios do sono para o aprendizado e a memória são amplamente aceitos na comunidade científica. Segundo a visão predominante, as lembranças recém-formadas são repetidas durante o sono e, durante esse processo, são registradas de forma mais intensa. No entanto, de acordo com Tononi, ao unir essas memórias, os circuitos neurais podem ser fortalecidos somente algumas vezes até chegar a sua força máxima. Ele e seus colegas reuniram evidências de que o sono também serve como um botão de reset que, de maneira uniforme, afrouxa conexões neurais para colocar o cérebro de volta em um estado flexível para que a aprendizagem possa ter lugar.
A teoria é controversa. Alguns pesquisadores do sono consideram o resultado ainda muito preliminar e apresentam a hipótese de que o sono seja um momento de consolidação e reforço da memória. Ainda assim, se Tononi estiver certo, dormir pode não ser apenas organizar memórias do passado recente – mas também garantir espaço para as memórias de experiências ainda não vividas.
A aprendizagem ocorre quando uma experiência, como ouvir uma nova música ou andar por uma cidade desconhecida, por exemplo, impõe um padrão de atividade em grupos de neurônios. A experiência altera interconexões de células: ligações entre neurônios coativos se fortificam enquanto aquelas fora do movimento se enfraquecem. Assim, as células se tornam interligadas de maneira funcional. Esta trama dedica-se a preservar um fragmento específico da experiência: a memória. Mais tarde, durante períodos “desligados” – particularmente quando estamos dormindo – o padrão registrado pela experiência se repete, conduzindo a alterações celulares que estabilizam o processo.
Embora grande parte dos pesquisadores conceba o sono como essa recapitulação de aprendizagem durante o dia, Tononi enxerga um problema em potencial nessa hipótese: se as ligações entre neurônios, as sinapses, fossem reajustadas e fortificadas ao longo de dias e noites consecutivas, as células neurais se tornariam “saturadas”. Assim como acontece com os pixels de uma imagem muito brilhante, um conjunto de sinapses uniformes potencializadas forneceria pouca informação. Da mesma forma, um cérebro nessas condições não teria como armazenar novas experiências.
Tononi também observou algumas propriedades interessantes das ondas cerebrais que ele e outros pesquisadores haviam registrado em pessoas dormindo. Cientistas há muito tempo sabem que as “ondas lentas” do sono – fase de descanso profundo em que fica mais difícil despertar – são necessárias e restauradoras. Mesmo assim, dois fenômenos específicos ainda chamavam a atenção de Tononi. Primeiro, ele identificou que pessoas privadas do sono de ondas lentas tendem a compensar o período com turnos mais longos e intensos desse tipo de sono mais tarde.
Além disso, o neurocientista notou que a intensidade do sono profundo – medida como amplitude em gravações de ondas cerebrais – cessa conforme a noite avança. Ambas as observações lhe forneceram exemplos de homeostase (a alternância de forças opostas para manter o equilíbrio do sistema biológico). O sono de ondas lentas parece “puxar” o cérebro de volta a algum tipo de equilíbrio que a vigília havia perturbado.
Tononi procurou desvendar o processo biológico que embasa as mudanças no sono de ondas lentas. Ele sabia que sua intensidade estava relacionada com a força total das sinapses. Quando os neurônios disparam em conjunto, conduzem grupos de conexões neurais à ativação em sincronia. A corrente elétrica que flui através das células neurais cria o sinal de ondas lentas (gravado com eletrodos implantados no couro cabeludo). Tononi acredita que estar acordado pode levar a uma proliferação ou ao reforço de sinapses e que a intensidade inicial elevada do sono de ondas lentas reflete essas redes celulares fortificadas. Se de alguma forma as sinapses se rompem durante este período de sono, este enfraquecimento poderia explicar por que os sinais do sono diminuem ao longo da noite.
Para embasar sua hipótese – apelidada por ele de “homeostase sináptica” – Tononi observou diretamente como as conexões se alteram entre o sono e a vigília. Em um estudo publicado em 2008, o neurocientista e seus colaboradores colheram tecido cerebral de alguns ratos em vigília e de outros animais enquanto dormiam. Para cada amostra de tecido, os pesquisadores usaram anticorpos radioativos para, de maneira seletiva, marcar várias proteínas que existem apenas nas sinapses. Curiosamente, eles encontraram quantidade significativamente maior de proteínas nos ratos acordados do que nos animais em repouso. Conclusão: existem menos sinapses no cérebro adormecido, ou seja, nessa condição as conexões têm menos recursos para comunicação eficaz – isto é, são mais fracas.
A hipótese ganha força com outro estudo publicado em 2010 pelo cientista Xiao-Bing Gao e seus colegas da Universidade Yale. Em colaboração com Tononi, a equipe de Gao gravou a atividade elétrica de neurônios individuais em fatias de tecido cerebral de roedores cochilando e em alerta. Constantemente, os neurônios se comunicam entre si por meio de pequenas correntes elétricas transportadas por meio das sinapses. Quanto mais intensa for a corrente que flui através delas, mais fortes serão as conexões. Os neurônios de roedores previamente acordados demonstraram descarga elétrica mais rápida e vigorosa do que a de animais em repouso, indicando que enquanto o cérebro dorme, os neurônios têm conexões sinápticas mais tênues. Os resultados sugerem que o cérebro alterna estados de ligações entre células neurais fracas e fortes durante o ciclo dia-noite.
MOSCAS SONOLENTAS
Se enquanto nos entregamos aos baços de Morfeu as sinapses são remodeladas, os pesquisadores devem ser capazes de ver os sinais estruturais dessas mudanças. As conexões através das quais os neurônios se comunicam podem variar em número e tamanho. Em geral, quanto maior a quantidade e o tamanho das sinapses, mais “informações elétricas” podem viajar entre dois neurônios conectados.
Os cientistas podem visualizar sinapses deixando marcas fluorescentes nas proteínas que trabalham em ambos os lados da fenda sináptica. Em 2011, Tononi e os neurocientistas de Wisconsin, Daniel Bushey e Chiara Cirelli, relataram o uso dessas técnicas para controlar o tamanho e o número de sinapses em moscas-das-frutas. Eles forçaram algumas moscas a ficarem acordadas, colocando-as em uma caixa giratória – na parte superior da rotação, os insetos sonolentos cairiam e acordariam – para verificar se protelar o sono impediria o encolhimento e a retração de sinapses. Surpreendentemente, de acordo com a hipótese de Tononi, os pesquisadores observaram maior densidade e tamanho de sinapses – em alguns casos, duas vezes maiores – no cérebro das moscas que haviam sido forçadas a permanecer acordadas em comparação com as moscas em repouso.
Em um estudo ainda mais recente, Tononi e sua equipe estenderam esses resultados a ratos. Ao rotular neurônios do córtex do cérebro desses mamíferos com indicadores fluorescentes, os pesquisadores observaram o crescimento e a retração de espinhas sinápticas – minúsculas protuberâncias arredondadas nos neurônios onde ocorrem as sinapses. Eles verificaram que a densidade total de conexões aumentou com a vigília, manteve-se elevada enquanto os animais estavam privados de sono e diminuiu somente após dormirem.
TÔNICO PARA ADORMECER
Antes que a homeostase sináptica possa ser considerada o principal motivo para dormir, os pesquisadores precisam encontrar maiores evidências de que algum aspecto ensurável da função neural – aprendizagem, memória ou percepção, por exemplo – é melhorado pela diminuição de sinapses e comprometido quando essas atividades são de alguma forma restringidas. Porém, há consenso de que não será fácil demonstrar essas provas.
Intuitivamente, sabemos que dormir é restaurador; muitas metáforas tentaram capturar esta ideia. O sono é um tônico, um bálsamo. A sabedoria popular afirma: “Nada como uma boa noite de sono entre um dia e outro”. “Dorme que passa...” Ou, como disse Shakespeare, dormir “entrelaça com cuidado os fios separados e cortados”. Ele não podia saber que o sono nos renova desfazendo no cérebro as malhas entrelaçadas durante o dia para que possamos viver e aprender novamente. Mas, de alguma forma, intuía.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/reparos_secretos_durante_o_sono.html
segunda-feira, 8 de abril de 2013
Perigosas sobreposições da loucura.
Identificar o outro como louco abre um campo de abuso de poder, intolerância e violência.
Desde o trabalho de referência do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), História da loucura na Idade Clássica, de1960 (Perspectiva, 1978), podemos entender que o uso do termo “loucura” desqualifica alguém, sendo usado para marcar uma diferença radical com relação ao que define a identidade de uma pessoa ou mesmo uma cultura. Louco é o “não-eu”. Chamamos de insensato aquele (ou aquilo) que não entendemos, que é tão diferente de nós que não conseguimos reconhecer ou mesmo atribuir sentido.
Desta perspectiva, é comum que quando surge a denominação de louco sejam acionados mecanismos de exclusão simplesmente porque uma pessoa (ou um grupo) pensa de forma radicalmente diferente da nossa ou não compartilha nossos valores morais ou religiosos. Identificar o outro como louco é abrir um campo de abuso de poder, intolerância e violência.
SEM MODELO PARA SEGUIR
Em nossa forma de lidar com a doença mental, vivemos alguns impasses e sobreposições terríveis. A primeira delas está relacionada à exclusão social e ao estigma. O termo “loucura” não é técnico, não pertence ao estudo da psiquiatria ou psicologia para descrição de uma patologia. Falar sobre loucura não é a mesma coisa que falar sobre formas de estruturação psíquica. Da perspectiva da psicanálise, por exemplo, não há desqualificação da pessoa estruturada como neurótica ou psicótica. Isso se dá por um ótimo motivo: pela óptica da psicanálise não há alguém sem um modo específico de se estruturar ou livre de sofrimento, que seja uma espécie de “modelo”, uma referência normativa em relação a quem os demais devam ser medidos. Assim, falar sofrimento mental, neurose, psicose, borderline etc. não implica dizer “loucura”.
A insanidade tangencia as organizações mentais no conceito de “doença mental”. Nele, aparecem o medo e a desqualificação associados ao sofrimento psíquico da pessoa. A loucura associa-se ao medo da falta de controle, ao caos, à imprevisibilidade, já que em muitos casos esse sofrimento mental leva as pessoas a perder contato com as demais, viver numa realidade própria sem discriminação ou consciência de que essa situação esteja ocorrendo. Formas de sofrimento assim são associadas às psicoses.
Porém, aquele que sofre dessa forma é afetado também pelo estigma social da loucura, que remete ao século 17 – aprendemos com Foucault – e diz respeito à consideração de que o homem tem sua existência fundamentada na razão. É ela que o define e o garante. Assim, tudo aquilo que possa remeter a perda da razão (doença mental ou efeito de drogas que alterem a consciência, por exemplo) acaba por implicar a perda da própria humanidade. Se um homem perde a razão, ele já não é um homem, mas um animal irracional. E aqui não há meio-termo: a pessoa é louca ou sã; tem mente ou é demente. Porém, essa concepção extremista que opõe a ordem ao caos é visivelmente exagerada – nem as pessoas “estatisticamente normais” têm absoluto controle racional sobre suas ações, nem aquele que sofre de doença mental perdeu por completo sua consciência, na maioria dos casos. Mas até a legislação vigente mantém este pressuposto: somos todos considerados responsáveis por nossos atos e por eles temos de responder, a não ser que haja diagnóstico psiquiátrico que ateste uma doença mental. Nesse caso, a pessoa não é considerada im- putável por seus atos.
Mas é preciso levar em conta que alguém reconhecido como insano perde sua condição de cidadania, autonomia e inúmeras possibilidades de inclusão social. A loucura – bem como outros tipos de sofrimento – de alguém com quem não temos envolvimento afetivo não costuma gerar em nós empatia ou compaixão, o que predomina são os sentimentos de medo e repúdio. Mas ao vermos alguém próximo enlouquecer, passamos a temer por nossa própria sanidade. É como se a empatia nos fizesse perceber a proximidade da possibilidade de perder a razão. Em um caso ou em outro, é bastante provável que as pessoas próximas queiram distância do louco. Ele provoca medo, aborrece, cansa, atrapalha.
Sabemos que, desde o século18, a perspectiva do Romantismo atribuiu ao louco uma aura de sabedoria e liberdade ante as cobranças e renúncias que a vida civilizada exige. Mas esta estetização da insanidade e a curiosidade (e mesmo sedução) que ela gera aparece, sobretudo, como idealização à distância, que não resiste ao convívio.
O segundo ponto a ser considerado está ligado à ambivalência no que diz respeito à internação. Um médico passa a ter poderes policiais e judiciais, pode solicitar a internação compulsória (contra a vontade) de alguém e, assim, retirar da pessoa sua condição de cidadão. Passar por internações costuma implicar a perda da condição de ser sujeito de sua vida. Surge aí uma questão extremamente complexa: determinar em que ponto acaba a autonomia de uma pessoa para discriminar sua própria condição de saúde e em que momento um outro (parente ou médico, em geral) passa a ter o direito de solicitar a internação contra a sua vontade.
Esse tipo de situação costuma ser terrível para todos os envolvidos. O familiar que solicita a internação, ainda que cuidando da integridade do internado e mesmo convicto de que seja o mais adequado a fazer, inevitavelmente se sentirá culpado e temerá estar errado. O internado, por sua vez, tende a se considerar sequestrado, traído, desqualificado. Em determinados casos de sofrimento mental, a internação pode vir ao encontro de fantasias de perseguição e exclusão. Além disso, se alguém sofre de modo a perder contato com a realidade externa, não é difícil perceber que ser retirado de seu ambiente potencializa muito a perda dessa conexão.
Não raro, o preço afetivo a ser pago pela internação é alto demais. Há casos em que a ferida que se abre pode não ser mais fechada. Por isto, é tão importante não banalizar essa medida e restringi-la a situações de risco efetivo de violência da pessoa contra si mesma e contra os outros. Depois de duas ou três internações cria-se o que podemos chamar de uma nova figura patológica: o paciente psiquiátrico. Após anos de internações e uso de medicação, torna-se difícil discriminar o quanto do comportamento estranho da pessoa se deve ao sofrimento original ou aos efeitos dos tratamentos. Uma pessoa vista como alguém com poucas chances de voltar à vida normal perde amigos, amores, sonhos; assiste a seus pares segundo suas vidas e se vê ficando para trás. Alguém que toma medicamentos pesados, e os tomará para sempre, enfrenta todas as implicações e efeitos físicos decorrentes desse uso: obesidade, risco de diabetes etc. E, é claro, será alguém com muito medo de ser novamente internado. Muitas vezes, aqueles mesmos que se tornam responsáveis pela pessoa a ameaçam de internação como forma de punição. O louco diz loucuras, sua palavra passa a não valer perante aqueles que supostamente cuidam dele. A ficção cinematográfica eternizou esse tipo de situação em filmes impactantes como Um estranho no ninho (de Milos Forman, 1975), Garota interrompida (de James Mangols, 1999) e, no Brasil, Bicho de sete cabeças (de Lais Bodansky, 2001). Com a exclusão social, a pessoa costuma ficar cada vez mais próxima à família (caso a tenha e nela encontre acolhimento). Mas mesmo o cuidado de parentes pode acabar por reverter na criação de um ambiente superprotetor, que mantém uma situação infantilizada. Para a psicanálise, este fechamento no ambiente familiar acaba por reproduzir – e tornar crônicos – elementos da própria constituição de muitas formas de sofrimento que podem ter deflagrado a crise o que, por sua vez, levou ao início do tratamento.
NEM TÃO FELIZES
A terceira questão a ser considerada é a “obrigação” contemporânea de ser livre e feliz, que leva os que não se sentem assim a carregarem o peso de estarem “errados”. Retomemos nossa primeira definição de loucura, aquela na qual louco é alguém cujas ações nos pareçam sem sentido. Em nosso ambiente contemporâneo, fortemente influenciado por um humanismo raso – presente na autoajuda e na intensa disseminação da ideia de que somos livres para sermos o que quisermos – uma figura da loucura é a tristeza, a melancolia. Se compramos a ideia tola de que o gozo está disponível a todos a todo o momento, ele passa a ser imperativo. E é isso que nos vendem a todo o momento as propagandas veiculadas pelos meios de comunicação. A experiência de estar triste assemelha, segundo essa lógica, a uma falha moral que deveria ser corrigida. É fácil percebermos o quanto uma pessoa deprimida, para além daquilo que a deprime, sente-seculpada por seu estado. Além de triste, ela se vê como fraca e fracassada, incapaz de obter a felicidade como bem de consumo alegadamente acessível a todos.
Outra figura contemporânea de loucura é a variedade de formas de dependência com as quais nos defrontamos – de drogas legais ou ilegais, games, redes sociais, comida, relacionamentos etc. Uma vez mais tendo como referência humanista o valor da autonomia e liberdade, como entender e aceitar que alguém opte por ser dependente? Essa pessoa sofre cumulativamente: por depender de algo, pelo que a faz depender e pela recriminação moral que recebe. O dependente é chamado de viciado e, como sabemos, vício é um conceito de natureza moral, oposto à virtude. Há ainda uma sobreposição importante com a qual convivemos hoje no campo da loucura é aquela entre o recurso da medicação e os interesses comerciais da indústria farmacêutica.
As facetas, as implicações, as sobreposições e os impasses do sofrimento mental são muitos. No livro Cadê minha sorte? (Loyola, 2009), de Mario Sergio Limberte, um pai que perdeu um filho de 30 anos, diagnosticado com esquizofrenia escreve: “Na nossa cultura dizer a uma pessoa que ela sofre de esquizofrenia é o mesmo que dizer: ‘você está louco’”. Generoso, o livro reúne grande quantidade de informações sobre a patologia, tratamentos e cuidados possíveis. Uma aproximação corajosa e sem preconceito do espectro da loucura.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/perigosas_sobreposicoes_de_loucura.html
Desde o trabalho de referência do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), História da loucura na Idade Clássica, de1960 (Perspectiva, 1978), podemos entender que o uso do termo “loucura” desqualifica alguém, sendo usado para marcar uma diferença radical com relação ao que define a identidade de uma pessoa ou mesmo uma cultura. Louco é o “não-eu”. Chamamos de insensato aquele (ou aquilo) que não entendemos, que é tão diferente de nós que não conseguimos reconhecer ou mesmo atribuir sentido.
Desta perspectiva, é comum que quando surge a denominação de louco sejam acionados mecanismos de exclusão simplesmente porque uma pessoa (ou um grupo) pensa de forma radicalmente diferente da nossa ou não compartilha nossos valores morais ou religiosos. Identificar o outro como louco é abrir um campo de abuso de poder, intolerância e violência.
SEM MODELO PARA SEGUIR
Em nossa forma de lidar com a doença mental, vivemos alguns impasses e sobreposições terríveis. A primeira delas está relacionada à exclusão social e ao estigma. O termo “loucura” não é técnico, não pertence ao estudo da psiquiatria ou psicologia para descrição de uma patologia. Falar sobre loucura não é a mesma coisa que falar sobre formas de estruturação psíquica. Da perspectiva da psicanálise, por exemplo, não há desqualificação da pessoa estruturada como neurótica ou psicótica. Isso se dá por um ótimo motivo: pela óptica da psicanálise não há alguém sem um modo específico de se estruturar ou livre de sofrimento, que seja uma espécie de “modelo”, uma referência normativa em relação a quem os demais devam ser medidos. Assim, falar sofrimento mental, neurose, psicose, borderline etc. não implica dizer “loucura”.
A insanidade tangencia as organizações mentais no conceito de “doença mental”. Nele, aparecem o medo e a desqualificação associados ao sofrimento psíquico da pessoa. A loucura associa-se ao medo da falta de controle, ao caos, à imprevisibilidade, já que em muitos casos esse sofrimento mental leva as pessoas a perder contato com as demais, viver numa realidade própria sem discriminação ou consciência de que essa situação esteja ocorrendo. Formas de sofrimento assim são associadas às psicoses.
Porém, aquele que sofre dessa forma é afetado também pelo estigma social da loucura, que remete ao século 17 – aprendemos com Foucault – e diz respeito à consideração de que o homem tem sua existência fundamentada na razão. É ela que o define e o garante. Assim, tudo aquilo que possa remeter a perda da razão (doença mental ou efeito de drogas que alterem a consciência, por exemplo) acaba por implicar a perda da própria humanidade. Se um homem perde a razão, ele já não é um homem, mas um animal irracional. E aqui não há meio-termo: a pessoa é louca ou sã; tem mente ou é demente. Porém, essa concepção extremista que opõe a ordem ao caos é visivelmente exagerada – nem as pessoas “estatisticamente normais” têm absoluto controle racional sobre suas ações, nem aquele que sofre de doença mental perdeu por completo sua consciência, na maioria dos casos. Mas até a legislação vigente mantém este pressuposto: somos todos considerados responsáveis por nossos atos e por eles temos de responder, a não ser que haja diagnóstico psiquiátrico que ateste uma doença mental. Nesse caso, a pessoa não é considerada im- putável por seus atos.
Mas é preciso levar em conta que alguém reconhecido como insano perde sua condição de cidadania, autonomia e inúmeras possibilidades de inclusão social. A loucura – bem como outros tipos de sofrimento – de alguém com quem não temos envolvimento afetivo não costuma gerar em nós empatia ou compaixão, o que predomina são os sentimentos de medo e repúdio. Mas ao vermos alguém próximo enlouquecer, passamos a temer por nossa própria sanidade. É como se a empatia nos fizesse perceber a proximidade da possibilidade de perder a razão. Em um caso ou em outro, é bastante provável que as pessoas próximas queiram distância do louco. Ele provoca medo, aborrece, cansa, atrapalha.
Sabemos que, desde o século18, a perspectiva do Romantismo atribuiu ao louco uma aura de sabedoria e liberdade ante as cobranças e renúncias que a vida civilizada exige. Mas esta estetização da insanidade e a curiosidade (e mesmo sedução) que ela gera aparece, sobretudo, como idealização à distância, que não resiste ao convívio.
O segundo ponto a ser considerado está ligado à ambivalência no que diz respeito à internação. Um médico passa a ter poderes policiais e judiciais, pode solicitar a internação compulsória (contra a vontade) de alguém e, assim, retirar da pessoa sua condição de cidadão. Passar por internações costuma implicar a perda da condição de ser sujeito de sua vida. Surge aí uma questão extremamente complexa: determinar em que ponto acaba a autonomia de uma pessoa para discriminar sua própria condição de saúde e em que momento um outro (parente ou médico, em geral) passa a ter o direito de solicitar a internação contra a sua vontade.
Esse tipo de situação costuma ser terrível para todos os envolvidos. O familiar que solicita a internação, ainda que cuidando da integridade do internado e mesmo convicto de que seja o mais adequado a fazer, inevitavelmente se sentirá culpado e temerá estar errado. O internado, por sua vez, tende a se considerar sequestrado, traído, desqualificado. Em determinados casos de sofrimento mental, a internação pode vir ao encontro de fantasias de perseguição e exclusão. Além disso, se alguém sofre de modo a perder contato com a realidade externa, não é difícil perceber que ser retirado de seu ambiente potencializa muito a perda dessa conexão.
Não raro, o preço afetivo a ser pago pela internação é alto demais. Há casos em que a ferida que se abre pode não ser mais fechada. Por isto, é tão importante não banalizar essa medida e restringi-la a situações de risco efetivo de violência da pessoa contra si mesma e contra os outros. Depois de duas ou três internações cria-se o que podemos chamar de uma nova figura patológica: o paciente psiquiátrico. Após anos de internações e uso de medicação, torna-se difícil discriminar o quanto do comportamento estranho da pessoa se deve ao sofrimento original ou aos efeitos dos tratamentos. Uma pessoa vista como alguém com poucas chances de voltar à vida normal perde amigos, amores, sonhos; assiste a seus pares segundo suas vidas e se vê ficando para trás. Alguém que toma medicamentos pesados, e os tomará para sempre, enfrenta todas as implicações e efeitos físicos decorrentes desse uso: obesidade, risco de diabetes etc. E, é claro, será alguém com muito medo de ser novamente internado. Muitas vezes, aqueles mesmos que se tornam responsáveis pela pessoa a ameaçam de internação como forma de punição. O louco diz loucuras, sua palavra passa a não valer perante aqueles que supostamente cuidam dele. A ficção cinematográfica eternizou esse tipo de situação em filmes impactantes como Um estranho no ninho (de Milos Forman, 1975), Garota interrompida (de James Mangols, 1999) e, no Brasil, Bicho de sete cabeças (de Lais Bodansky, 2001). Com a exclusão social, a pessoa costuma ficar cada vez mais próxima à família (caso a tenha e nela encontre acolhimento). Mas mesmo o cuidado de parentes pode acabar por reverter na criação de um ambiente superprotetor, que mantém uma situação infantilizada. Para a psicanálise, este fechamento no ambiente familiar acaba por reproduzir – e tornar crônicos – elementos da própria constituição de muitas formas de sofrimento que podem ter deflagrado a crise o que, por sua vez, levou ao início do tratamento.
NEM TÃO FELIZES
A terceira questão a ser considerada é a “obrigação” contemporânea de ser livre e feliz, que leva os que não se sentem assim a carregarem o peso de estarem “errados”. Retomemos nossa primeira definição de loucura, aquela na qual louco é alguém cujas ações nos pareçam sem sentido. Em nosso ambiente contemporâneo, fortemente influenciado por um humanismo raso – presente na autoajuda e na intensa disseminação da ideia de que somos livres para sermos o que quisermos – uma figura da loucura é a tristeza, a melancolia. Se compramos a ideia tola de que o gozo está disponível a todos a todo o momento, ele passa a ser imperativo. E é isso que nos vendem a todo o momento as propagandas veiculadas pelos meios de comunicação. A experiência de estar triste assemelha, segundo essa lógica, a uma falha moral que deveria ser corrigida. É fácil percebermos o quanto uma pessoa deprimida, para além daquilo que a deprime, sente-seculpada por seu estado. Além de triste, ela se vê como fraca e fracassada, incapaz de obter a felicidade como bem de consumo alegadamente acessível a todos.
Outra figura contemporânea de loucura é a variedade de formas de dependência com as quais nos defrontamos – de drogas legais ou ilegais, games, redes sociais, comida, relacionamentos etc. Uma vez mais tendo como referência humanista o valor da autonomia e liberdade, como entender e aceitar que alguém opte por ser dependente? Essa pessoa sofre cumulativamente: por depender de algo, pelo que a faz depender e pela recriminação moral que recebe. O dependente é chamado de viciado e, como sabemos, vício é um conceito de natureza moral, oposto à virtude. Há ainda uma sobreposição importante com a qual convivemos hoje no campo da loucura é aquela entre o recurso da medicação e os interesses comerciais da indústria farmacêutica.
As facetas, as implicações, as sobreposições e os impasses do sofrimento mental são muitos. No livro Cadê minha sorte? (Loyola, 2009), de Mario Sergio Limberte, um pai que perdeu um filho de 30 anos, diagnosticado com esquizofrenia escreve: “Na nossa cultura dizer a uma pessoa que ela sofre de esquizofrenia é o mesmo que dizer: ‘você está louco’”. Generoso, o livro reúne grande quantidade de informações sobre a patologia, tratamentos e cuidados possíveis. Uma aproximação corajosa e sem preconceito do espectro da loucura.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/perigosas_sobreposicoes_de_loucura.html
A linguagem da dor.
Mostra na estação Brás do metrô, em São Paulo, exibe quadros pintados por mulheres com fibromialgia.
“A dor é um veneno de cuja taça todos provaram: não há ninguém que não consiga lembrar o gosto e que não tenha medo de um gole maior”, define Melanie Thernstrom em Crônicas da dor (Objetiva, 2011). A metáfora da escritora americana, que sofre de dor crônica, se aplica à fibromialgia. Caracterizada por dores difusas e constantes por todo o corpo, a síndrome afeta 2,5% da população mundial, em sua maioria mulheres, e não tem cura. Os sintomas podem ser controlados com medicamentos e psicoterapia, mas muitas das pacientes lidam diariamente com eles, que não raro limitam o trabalho e atividade física. A convivência íntima com a sensação dolorosa é tema da mostra A DorArte – 20 pinturas de mulheres com fibromialgia expostas na estação Brás do metrô, em São Paulo.
As autoras das obras são pacientes do Hospital Universitário da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) durante o projeto Mãos à Obra, desenvolvido pela fisioterapeuta e bailarina Andréia Baptista, do departamento de reumatologia da mesma instituição, que pesquisou os efeitos terapêuticos da arte sobre os sintomas da fibromialgia em sua dissertação de mestrado. Cerca de 80 voluntárias tiveram aulas de desenho e pintura em grupo ao longo de cinco meses e foram incentivadas a expressar seus sentimentos nas telas. Segundo a pesquisadora, a atividade se refletiu em diminuição das queixas de dor e aumento do bem-estar das pacientes. As obras expostas foram selecionadas entre mais de 200. “Elas retratam sensações e angústias ligadas à dor, fadiga, alterações de sono e de humor”, diz Andréia.
A DorArte. Estação Brás (Linha 3 – Vermelha). Praça Agente Cícero, s/no, Brás, São Paulo. Diariamente, das 4h40 às 0h35. Até o fim de abril.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/a_linguagem_da_dor.html
“A dor é um veneno de cuja taça todos provaram: não há ninguém que não consiga lembrar o gosto e que não tenha medo de um gole maior”, define Melanie Thernstrom em Crônicas da dor (Objetiva, 2011). A metáfora da escritora americana, que sofre de dor crônica, se aplica à fibromialgia. Caracterizada por dores difusas e constantes por todo o corpo, a síndrome afeta 2,5% da população mundial, em sua maioria mulheres, e não tem cura. Os sintomas podem ser controlados com medicamentos e psicoterapia, mas muitas das pacientes lidam diariamente com eles, que não raro limitam o trabalho e atividade física. A convivência íntima com a sensação dolorosa é tema da mostra A DorArte – 20 pinturas de mulheres com fibromialgia expostas na estação Brás do metrô, em São Paulo.
As autoras das obras são pacientes do Hospital Universitário da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) durante o projeto Mãos à Obra, desenvolvido pela fisioterapeuta e bailarina Andréia Baptista, do departamento de reumatologia da mesma instituição, que pesquisou os efeitos terapêuticos da arte sobre os sintomas da fibromialgia em sua dissertação de mestrado. Cerca de 80 voluntárias tiveram aulas de desenho e pintura em grupo ao longo de cinco meses e foram incentivadas a expressar seus sentimentos nas telas. Segundo a pesquisadora, a atividade se refletiu em diminuição das queixas de dor e aumento do bem-estar das pacientes. As obras expostas foram selecionadas entre mais de 200. “Elas retratam sensações e angústias ligadas à dor, fadiga, alterações de sono e de humor”, diz Andréia.
A DorArte. Estação Brás (Linha 3 – Vermelha). Praça Agente Cícero, s/no, Brás, São Paulo. Diariamente, das 4h40 às 0h35. Até o fim de abril.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/a_linguagem_da_dor.html
A neurobiologia da maconha.
Sendo o cérebro tão vasto e complexo e a ação dos canabinóides tão diversa, não é de estranhar que a maconha produza efeitos variáveis no tempo, entre indivíduos e em diferentes contextos comportamentais.
Embora muitos efeitos mentais da Cannabis sejam conhecidos, seus mecanismos de ação no cérebro ainda guardam segredos. Evidências recentes, no entanto, mostram que os canabinóides produzem uma desorganização do ritmo cerebral, principalmente no hipocampo, área relacionada à formação de memória.
Registrando a atividade de dezenas de neurônios por meio de finíssimos fios metálicos conectados a amplificadores, neurofisiologistas húngaros e americanos da Universidade Rutgers em Newark, Estados Unidos, investigaram o efeito de canabinóides naturais e sintéticos na atividade neural e no comportamento de ratos enquanto estes realizavam uma tarefa de alternância espacial.
Os animais tinham de buscar recompensa em lugares que mudam com o tempo conforme uma ordem fixa. Isto exigia que eles se lembrassem da última escolha que fizeram, algo que depende da integridade do hipocampo. Os pesquisadores verificaram que os canabinóides produzem redução na potência dos ritmos hipocampais em diversas faixas de freqüência, efeito que puderam reverter utilizando um antagonista do receptor CB1, isto é, uma droga que bloqueia a ação dos canabinóides neste receptor.
A redução do ritmo hipocampal denominado teta, caracterizado por oscilações neurais numa faixa estreita de freqüências entre 4 e 12 Hz, correlacionou-se diretamente com os déficits de memória de trabalho. Quando os pesquisadores compararam a atividade de neurônios individuais antes e depois da administração dos canabinóides, verificaram que o tratamento teve apenas um leve impacto na freqüência com a qual potenciais de ação ocorrem em neurônios excitatórios e inibitórios. Entretanto, uma análise de coordenação temporal (sincronização) da atividade de grupos neuronais deixou claro que a sincronia da ocorrência de potenciais de ação de neurônios individuais é fortemente diminuída pelos canabinóides, literalmente desorganizando o processamento de informações no hipocampo.
Sendo o cérebro tão vasto e complexo, a ação dos canabinóides tão diversa e a interação com seus receptores canabinóides tão diferenciada, variando conforme a região cerebral enfocada e a dose utilizada, não é de estranhar que a maconha, que contém 70 canabinóides com propriedades distintas, produza efeitos muito variáveis no tempo, entre indivíduos e em diferentes contextos comportamentais.
As diversas funções reguladas por endocanabinóides derivam do funcionamento articulado de redes complementares de neurônios excitatórios e inibitórios, promovendo ação e contra-ação em níveis escalonados tanto molecular quanto sistêmico. Em contraste com essa precisa regulação temporal e localizada da ativação de receptores CB1, o consumo de maconha provoca diminuição generalizada da sincronia das populações de neurônios que integram os sistemas cerebrais com alta densidade de receptores canabinóides, como o hipocampo e o estriado.
Dado o alto grau de conexão destas regiões com o resto do cérebro, pode se dizer que a maconha produz uma reestruturação global dos padrões de atividade neuronal. A ação antiepilética, os déficits de memória de curto prazo, a alteração perceptiva que converte até os estímulos mais corriqueiros em novidade, a perda de atenção, a sensação alterada da passagem do tempo, a preguiça, o aumento da criatividade e da atitude contemplativa, todos esses efeitos mentais tipicamente causados pela maconha talvez derivem diretamente da flexibilização da coordenação entre grupos neuronais.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/a_neurobiologia_da_maconha.html
Embora muitos efeitos mentais da Cannabis sejam conhecidos, seus mecanismos de ação no cérebro ainda guardam segredos. Evidências recentes, no entanto, mostram que os canabinóides produzem uma desorganização do ritmo cerebral, principalmente no hipocampo, área relacionada à formação de memória.
Registrando a atividade de dezenas de neurônios por meio de finíssimos fios metálicos conectados a amplificadores, neurofisiologistas húngaros e americanos da Universidade Rutgers em Newark, Estados Unidos, investigaram o efeito de canabinóides naturais e sintéticos na atividade neural e no comportamento de ratos enquanto estes realizavam uma tarefa de alternância espacial.
Os animais tinham de buscar recompensa em lugares que mudam com o tempo conforme uma ordem fixa. Isto exigia que eles se lembrassem da última escolha que fizeram, algo que depende da integridade do hipocampo. Os pesquisadores verificaram que os canabinóides produzem redução na potência dos ritmos hipocampais em diversas faixas de freqüência, efeito que puderam reverter utilizando um antagonista do receptor CB1, isto é, uma droga que bloqueia a ação dos canabinóides neste receptor.
A redução do ritmo hipocampal denominado teta, caracterizado por oscilações neurais numa faixa estreita de freqüências entre 4 e 12 Hz, correlacionou-se diretamente com os déficits de memória de trabalho. Quando os pesquisadores compararam a atividade de neurônios individuais antes e depois da administração dos canabinóides, verificaram que o tratamento teve apenas um leve impacto na freqüência com a qual potenciais de ação ocorrem em neurônios excitatórios e inibitórios. Entretanto, uma análise de coordenação temporal (sincronização) da atividade de grupos neuronais deixou claro que a sincronia da ocorrência de potenciais de ação de neurônios individuais é fortemente diminuída pelos canabinóides, literalmente desorganizando o processamento de informações no hipocampo.
Sendo o cérebro tão vasto e complexo, a ação dos canabinóides tão diversa e a interação com seus receptores canabinóides tão diferenciada, variando conforme a região cerebral enfocada e a dose utilizada, não é de estranhar que a maconha, que contém 70 canabinóides com propriedades distintas, produza efeitos muito variáveis no tempo, entre indivíduos e em diferentes contextos comportamentais.
As diversas funções reguladas por endocanabinóides derivam do funcionamento articulado de redes complementares de neurônios excitatórios e inibitórios, promovendo ação e contra-ação em níveis escalonados tanto molecular quanto sistêmico. Em contraste com essa precisa regulação temporal e localizada da ativação de receptores CB1, o consumo de maconha provoca diminuição generalizada da sincronia das populações de neurônios que integram os sistemas cerebrais com alta densidade de receptores canabinóides, como o hipocampo e o estriado.
Dado o alto grau de conexão destas regiões com o resto do cérebro, pode se dizer que a maconha produz uma reestruturação global dos padrões de atividade neuronal. A ação antiepilética, os déficits de memória de curto prazo, a alteração perceptiva que converte até os estímulos mais corriqueiros em novidade, a perda de atenção, a sensação alterada da passagem do tempo, a preguiça, o aumento da criatividade e da atitude contemplativa, todos esses efeitos mentais tipicamente causados pela maconha talvez derivem diretamente da flexibilização da coordenação entre grupos neuronais.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/a_neurobiologia_da_maconha.html
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