sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O desejo de arriscar.

Estudos mostram que assumir riscos é uma necessidade fisiológica comparável à de se alimentar.



É preciso assumir riscos? O quanto isso nos faz bem? Nem todos temos o mesmo gosto pelo perigo. Mas até sem perceber nos arriscamos todos os dias. Talvez você tenha, por exemplo, passado desnecessariamente pelo sinal amarelo ou feito um movimento perigoso ao praticar algum esporte; ou é possível que tenha, simplesmente, tomado uma decisão sem levar em conta todas as conseqüências, porque as circunstâncias pareciam exigir essa atitude.

Todo comportamento humano ou animal apresenta riscos, sempre que seu resultado tiver uma margem de incerteza. A capacidade de assumi-los está inscrita em nosso comportamento e, provavelmente, em certas estruturas de nosso cérebro. Além disso, certo frio na barriga pode ser prazeroso. Para compreender a lógica do risco, como sua necessidade aumenta e pode ser saciada, estudamos pessoas que levam esse tipo de situação ao extremo: os base-jumpers, que saltam com pára-quedas em queda livre de falésias ou pontes. Observamos que o risco responde a uma necessidade fisiológica comparável à de se alimentar nos adeptos deste esporte. Assim como comemos para saciar a fome, corremos perigo para reduzir a sensação de “necessidade de risco”. Essa sensação repousa sobre redes cerebrais e cumpre uma função de sobrevivência.

O base-jump é um esporte radical que consiste em saltar de pára-quedas de edifícios (daí a letra inicial B, do inglês building), de antenas, (antenna), pontes (span) ou falésias (Earth). Este tipo de atividade comporta um significativo risco de acidente. Estudamos três especialistas franceses deste esporte, que aceitaram responder a questionários psicológicos para avaliar as dimensões de suas personalidades, antes e depois dos saltos. Esses base-jumpers são pára-quedistas de bom nível, com disciplina de vida rigorosa que exclui o tabaco, o álcool e as drogas. Para o estudo, realizaram 20 saltos: 17 de uma falésia, dois de chaminés de fábrica, à noite, e um de uma antena de retransmissão de televisão. A altura dos saltos variou entre 90 e 300 metros, sendo que os saltos de pontos mais baixos diminuem a margem de manobra do saltador, que decide o momento de abrir o pára-quedas. Alguns eram saltos de “rotina”, efetuados de um ponto conhecido, outros “exploratórios”, comportando riscos bem maiores, em razão da incerteza relativa a condições como altura, obstáculos potenciais durante a queda ou correntes de ar.

Elaboramos questões concebidas para avaliar a propensão a se envolver no perigo. Nos anos 70, o neuropsicólogo americano Marvin Zuckerman elaborou um questionário para avaliar um tipo de comportamento chamado “busca de sensações”. Pessoas com esse objetivo procuram experiências incomuns, como o consumo de drogas, relações sexuais variadas ou, dito de forma mais geral, têm atitudes que diferem dos comportamentos “habituais”. Para avaliar esse tipo de personalidade formulam-se questões como: “Você suporta ver um mesmo filme várias vezes?” ou “Você gosta de experimentar drogas alucinógenas?”. As pessoas que alcançam muitos pontos neste questionário caracterizam-se por uma intensa atividade de seu sistema de busca de prazer.

Nosso questionário sobre o risco inspirou-se no de Zuckerman, mas com uma nuance. O risco difere da busca de sensações, evocada acima, já que nem sempre expressa uma psicopatologia. Ele reflete a capacidade do indivíduo, não de buscar prazer ou sensações, mas de realizar ações com certa margem de incerteza. Por isso nossas questões insistem neste aspecto: “Se o sinal está amarelo, sua tendência é brecar ou acelerar?” ou “Em uma escada desconhecida a luz se apaga: você pára ou prossegue tateando?”.



As respostas evidenciam a tendência para realizar uma ação mesmo quando não é possível medir conseqüências. Esta é a definição do risco. E sua escala de avaliação, chamada de EVAR, contém 24 questões referentes a cinco fatores: autocontrole, busca de prazer, energia, impulsividade e invulnerabilidade. Os base-jumpers apresentaram, antes dos saltos, pontuações excepcionalmente altas nas categorias gosto pelo perigo, invulnerabilidade, energia e autocontrole. Os saltadores se sentem, nessas circunstâncias, dispostos a tudo. Isso não quer dizer que desconheçam os riscos. E não são impulsivos. Suas pontuações, altas nos demais itens, foram normais em relação a esse aspecto. Os base-jumpers têm bom controle de seus atos, segundo lógica rigorosa. Eles podem, por exemplo, adiar suas ações quando necessário, o que um impulsivo é incapaz de fazer.

Em estudo recente já havíamos revelado uma fraca impulsividade entre pilotos de caça; eles têm a capacidade de assumir riscos, mas permanecem donos de seus atos. Em suma, a pessoa que ama o risco procura o perigo, mas decide o momento em que o enfrentará, diferentemente do impulsivo. A busca de sensações puras, reveladas pelo questionário de Zuckerman, mostrou haver uma significativa impulsividade em psicopatas ou toxicômanos. Um fato notável é que as pontuações obtidas nas categorias invulnerabilidade, energia, autocontrole e perigo foram elevadas antes do salto, mas retornaram a níveis normais logo após. Em rápidos segundos, o estado psicológico do saltador se modificara (veja quadro na pág. XX). O que se passou durante o salto?

A pessoa saciou sua sede de risco. Foi a necessidade de enfrentar uma situação arriscada que a levou a saltar, como a fome nos incita a comer. Após alguns segundos, as estruturas cerebrais que suscitaram esta “fome” foram satisfeitas. Mas que estruturas são essas? Nas pessoas em busca de sensações (consumo de drogas, experiências sexuais) os neurônios de dopamina funcionam de forma plena e este funcionamento é intensificado pela presença de testosterona. Assim, o comportamento de busca de sensações é mais marcado nos homens jovens com altas taxas de testosterona e uma intensa atividade dos neurônios de dopamina. Nesses indivíduos é muito ativo o sistema de recompensa cerebral, isto é, o conjunto de neurônios situados no sistema mesolímbico. Nas mulheres, ao contrário, a presença de progesterona estimula uma enzima de degradação da dopamina, o que explica a menor freqüência, entre elas, de comportamentos de busca de sensações. A dopamina é o neurotransmissor da recompensa: quando copulamos ou quando comemos nosso prato favorito a dopamina se fixa sobre esses receptores e nossos circuitos cerebrais da recompensa são ativados.

Quando assumimos um risco, os mesmos circuitos provavelmente intervêm. Na França, os base-jumpers são quase exclusivamente homens (há uma ou duas mulheres), o que confirma a hipótese de circuitos dopaminérgicos estimulados pela testosterona e atenuados pela progesterona. Além disso, observamos que a cafeína, que produz efeitos análogos aos da dopamina ao excitar seus receptores, mantém elevado nível de aceitação de risco entre os pilotos de caça em situações de stress e de fadiga, quando este nível deveria, ao contrário, diminuir. Assim, o risco funciona como um termostato. O nível de propensão a assumir riscos eleva-se às vezes, como a temperatura em um recinto, e um mecanismo para reduzi-la se faz necessário. Esse mecanismo é a aceitação do risco, que expõe o indivíduo a uma situação de perigo e de incerteza, sacia seu desejo e então reduz a temperatura.



O risco se torna nefasto quando é excessivo ou insuficiente. Um motorista que não estivesse disposto a assumir nenhum risco deixaria imediatamente de dirigir. Uma propensão máxima ao risco, por outro lado, provocaria infrações e delitos no volante que limitariam as chances de vida da pessoa. É o risco percebido, e não o risco real, que é objeto de regulação. Assim, uma pessoa brincando de roleta-russa sem saber que não há nenhuma bala na arma saciará sua sede de risco, mesmo que o risco real seja nulo. Nos anos 70, quando os países do Norte da Europa adotaram a direção do lado direito, previu-se um aumento do número de vítimas do trânsito. Mas, ao contrário, houve uma diminuição. O paradoxo pode ser explicado pela sensação de risco: em condições de circulação pouco familiares, o risco percebido é superior e, assim, basta uma pequena infração (por exemplo, transitar um pouco acima do limite de velocidade) para que as pessoas sintam um risco considerável, o que sacia a sede de risco. Em condições de trânsito familiares, pelo contrário, é preciso assumir um risco real superior (por exemplo, passar pelo farol vermelho) para correr um risco percebido equivalente.

No período paleolítico riscos significativos eram assumidos no cotidiano. Para comer era preciso matar um animal, tarefa que comportava uma probabilidade considerável de ser morto ou ferido. Naquele período os neurônios do risco eram indispensáveis e se fixaram de forma durável, já que as pessoas desprovidas deles não podiam sobreviver. Hoje banimos o risco de nossas vidas. Essa segurança excessiva surge na forma de inúmeras garantias: aposentadoria, segurança social, seguros de automóvel, de residência e de vida, prática médica legalizada e decisões políticas fundadas no princípio da precaução. Talvez essa seja a razão pela qual alguns jovens sentem a necessidade de se expor a situações extremamente perigosas. Sabemos de adolescentes que atravessam estradas para testar quem é o mais hábil em evitar os carros. É provável que os mesmos neurônios que suscitam esses comportamentos outrora incitassem os caçadores a enfrentar um urso a golpes de pedras.

Não é de surpreender que alguns indivíduos ainda tenham um “termostato” de risco regulado em um ponto muito alto. São provavelmente homens jovens com taxas de testosterona significativas, para os quais as atividades sociais atuais, talvez excessivamente seguras, não bastem. Seria preciso oferecer-lhes esportes radicais, aventuras ou profissões arriscadas, como a de policial, piloto de caça ou bombeiro. Outros encontram o risco em cassinos ou na bolsa, pela incerteza ligada a estes tipos de atividade. Todos temos o instinto do risco? Sem dúvida, mas em graus diversos. Mesmo no Paleolítico nem todos os membros da tribo eram caçadores. Especialistas mais inclinados aos riscos do que outros se encarregavam desta tarefa. Foram talvez os ancestrais dos base-jumpers.

Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/o_desejo_de_arriscar.html

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