Antigamente se dizia, cinicamente, que a inteligência era aquilo que os testes mediam; hoje podemos pensar que a depressão é aquilo que os antidepressivos curam.
Corre na França acalorada controvérsia sobre o atendimento psicanalítico de crianças autistas. Desde um estudo de 2003, financiado pela Caixa Nacional de Seguro de Saúde daquele país, surgem tentativas recorrentes de desqualificar o uso da psicanálise no tratamento dos “transtornos diagnosticados pela primeira vez na infância ou na adolescência”, bem como a antiga tradição de estudos psicopatológicos, embasados na observação clínica e no acompanhamento longitudinal de casos. A contenda se desenvolve de forma mais aguda e devastadora para os maiores interessados: as crianças. A situação chegou ao extremo com a divulgação de um vídeo, editado de maneira grosseira, expondo declarações sem sentido e equívocas de certos psicanalistas. Uma associação de pais requereu que o ministério da saúde francês suspendesse a recomendação do tratamento de crianças autistas pelo método psicanalítico. Tradicionais centros de tratamento de crianças como Bonneuil foram ameaçados de intervenção psiquiátrica e coagidos a empregar formas “administrativamente mais viáveis” de tratamento das dificuldades graves da infância. Bons argumentos acerca desse sequestro medicalizante do sofrimento na infância podem ser encontrados na compilação organizada por Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik em O livro negro da psicopatologia contemporânea (Via Lettera, 2011).
Desde o DSM-III verifica-se um expurgo de oposições diagnósticas oriundas da psicanálise, tais como a distinção entre neurose e psicose, bem como a substituição dos antigos quadros clínicos, que definia sintomas em sua lógica de produção, por categorias descritivas e arranjos arbitrários de signos. Enquanto temos uma espantosa proliferação de novos transtornos para os adultos – cogita-se incluir a tensão prémenstrual (TPM) como a mais nova forma de doença mental – no campo da clínica com crianças há um processo inverso de redução e expansão injustificada dos critérios diagnósticos para o autismo.
Por que será que a diagnóstica das doenças mentais dos adultos se pulveriza na medida inversa em que a diagnóstica das crianças se concentra inflacionando o autismo? Que epidemia teria feito as crianças sofrerem de modo cada vez mais igual e os adultos de modo cada vez mais diferente? Por que os sofrimentos se “atualizam” de forma tão afinada com as gerações de medicamentos? Agregados de forma cumulativo, tal como Combo Junky Food, os novos quadros clínicos são recorrentemente definidos de modo reverso. Antigamente se dizia, cinicamente, que a inteligência é aquilo que os testes de inteligência mediam. Hoje ouvimos dizer, analogamente, que a depressão é aquilo que os antidepressivos curam. E que o autismo é aquilo que os neurolépticos aquietam. Efeito da compressão diagnóstica, que exclui a existência de quadros de psicose entre crianças, este limite interesseiro da classificação e da prerrogativa de tratamento prolifera a retórica do pósdiagnóstico. Ou seja, inúmeros casos de cura de autismo – conforme depoimentos de pais de crianças tratadas pela psicanálise – são neutralizados pelo argumento “fatalista” de que se houve melhora é porque o diagnóstico inicial estava errado (não eram verdadeiros autistas). A sobrecarga de diagnósticos de déficit de atenção e hiperatividade (que aparentemente herdou a popularidade das antigas dislexias) e de transtornos do espectro autista parece estar a serviço da supermedicalização. Mas com a nova lei brasileira do ato médico só haverá um tipo de diagnóstico e de indicação de tratamento. E não será o psicanalítico. Enquanto isso as crianças sofrerão caladas, sonolentas e pacificadas; seus pais terão certeza absoluta de que estão fazendo o melhor para seus filhos, os médicos seguirão seus protocolos e a saúde das populações terá sido resguardada contra a peste da psicanálise.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/a_peste_da_psicanalise.html
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