quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Pedófilo por acidente.

Um artigo publicado na revista Mente e Cérebro pretende debater a fundo as alterações que podem acontecer com o cérebro e, principalmente, com as mudanças de personalidade que podem ocorrer após a ocorrência de um trauma ou de uma neoplasia.
Não é a primeira vez que é documentado um caso de mudança brusca de hábitos a partir de um evento dessa natureza.
Poderá ocorrer de, em um futuro próximo, podermos definir com precisão qual o papel do córtez pré-frontal na determinação da personalidade de cada um? Será possível serem desenvolvidas cirurgias que possam trabalhar essa área cerebral de tal forma que certas personalidades "indesejadas" , como a dos pedófilos, sejam modificadas?
segue abaixo o artigo na íntegra para análise dos leitores.




Um tumor ou um trauma podem alterar a personalidade, fazendo com que pessoas se tornem, de uma hora para outra, violentas e apresentem compulsões sexuais desenfreadas.
Março de 1999. A mulher de C. se recorda bem quando numa tarde sua filha de 8 anos confessou ter sido molestada pelo padrasto, de 40 anos. Inicialmente incrédula, a mulher resolveu investigar e descobriu que o marido, um professor do ensino médio, íntegro membro da comunidade de uma pequena cidade da Virgínia, nos Estados Unidos, conservava na garagem uma coleção de revistas pornográficas, muitas delas com conteúdo explicitamente pedófilo. Não apenas isso: examinando o disco rígido do computador de casa, ela descobriu que, em vez de passar parte das noites preparando suas aulas, o homem com quem se casara visitava sites de conteúdo sexual nos quais eram veiculadas imagens de adolescentes e crianças.


Para proteger a filha, a mulher prestou queixa: o marido, abordado na saída da escola, acusado de assédio sexual de menor, foi detido e processado. No decorrer da audiência, C. contou sobre seu interesse por pornografia, que surgira pela primeira vez durante a adolescência, mas negou terminantemente ter tido impulsos pedófilos antes, salvo nos últimos meses. “Estou desesperado”, disse ao juiz. “Sei que o que fiz é horrível, mas não consigo entender. Sempre gostei de revistas pornográficas, como muitos homens, mas isso nunca interferiu na minha vida pessoal, no meu casamento, tampouco na minha relação com minha enteada, que considero como uma filha, ou com meus alunos. Há alguns meses, porém, não consigo me controlar: sou atraído por sites pedófilos e, pela primeira vez na vida, procurei uma prostituta. Juro que não queria, mas não pude me conter.”


O juiz decretou seu afastamento da casa e a obrigação de frequentar, como alternativa à prisão, um centro de reabilitação para maníacos sexuais, que dispunha de um programa de acompanhamento psicológico com 12 sessões. Além disso, foi imposto a C. um tratamento farmacológico com medroxiprogesterona, hormônio que inibe o impulso sexual masculino. Embora o professor desejasse com todas as suas forças evitar a prisão, era preciso reconhecer que após os primeiros meses de tratamento a situação não havia melhorado: quando começou a molestar os pacientes e o pessoal do centro de reabilitação, o juiz revogou a medida alternativa e decretou que ficasse detido.
Na noite anterior à prisão, em janeiro de 2000, C. queixou-se de forte dor de cabeça e foi levado ao pronto-socorro. O médico de plantão considerou a hipótese de que a queixa fosse uma simulação para evitar a detenção; mesmo assim o internou no setor de psiquiatria com o diagnóstico de pedofilia.


No dia seguinte, porém, o paciente caiu enquanto tomava banho, e foi requisitada a presença de um neurologista para examiná-lo. O especialista encontrou um quadro clínico realmente grave. Deitado no chão, imerso na própria urina, C. gritava e se debatia, convidando as enfermeiras e outras funcionárias que passavam a manter relações sexuais com ele. Também apresentava alguns sinais neurológicos, como pequena inclinação do lábio para a esquerda, acompanhada por uma série de reflexos patológicos: indício de comprometimento do córtex cerebral frontal. Uma anamnese mais cuidadosa revelou que as dores de cabeça haviam surgido dois anos antes, mais ou menos na mesma época das primeiras pulsões pedófilas.


Os médicos solicitaram a realização de um exame de ressonância magnética, que revelou a presença de um grande tumor na fossa craniana anterior. A massa se deslocava e comprimia o lobo frontal direito. C. era capaz de ler, mas sua escrita era incompreensível; além disso, mostrava sinais de apraxia, isto é, a incapacidade de executar movimentos coordenados que em geral são controlados exatamente pelo lobo frontal.
Uma longa e delicada intervenção cirúrgica permitiu a retirada do tumor, um emangiopericitoma – tipo raro de neoplasia maligna que compromete a vascularização das áreas atingidas. Com a erradicação do tumor, desapareceu também o apetite sexual do paciente e, sobretudo, o impulso pedófilo: após a cirurgia ele voltava a ser o professor tranquilo que todos conheciam. A mulher de C. começou a encontrar-se novamente com ele e, após sete meses, nos quais o ex-marido frequentou assiduamente um grupo de dependentes de sexo anônimo, ela o acolheu em casa, depois do parecer do médico: C. já não representava nenhuma ameaça para a menina e, de qualquer modo, seria importante para ambos restabelecer a relação interrompida de modo tão traumático.



Entretanto, em outubro de 2001 a dor de cabeça voltou – e com ela a tendência a acumular material pornográfico: porém, desta vez C. sabia do que se tratava e foi diretamente ao hospital. O exame de ressonância confirmou a suspeita: o tumor voltara. Uma segunda cirurgia, realizada em fevereiro de 2002, foi bem-sucedida – e novamente desapareceu o apetite sexual exacerbado.


O caso de C., publicado pela revista médica Archives of Neurology, atraiu a atenção de neurocientistas de vários países, em particular daqueles que estudam a consciência (a função da mente destinada à interação com o ambiente e com o próximo e, sobretudo, à determinação do comportamento individual). Que o córtex – e em particular a área pré-frontal – desempenha um papel fundamental no controle das pulsões é notório há quase 150 anos. Em 1848, o operário Phineas Gage, homem tranquilo, honrado e religioso, foi atingido por um pedaço de metal que se instalou em seu lobo frontal em consequência de um acidente de trabalho. Gage sobreviveu, mas sua personalidade mudou radicalmente: tornou-se violento, desbocado, e sua conduta moral passou a ser duvidosa. Este caso clássico possibilitou o surgimento das neurociências modernas, que atribuem função precisa para cada área cerebral.
A situação vivida por C., porém, pertence a outra categoria. Ele não apresenta alteração da consciência em relação ao reconhecimento do que é certo ou errado. Então, como é possível que uma doença mude radicalmente a personalidade de um homem, a ponto de fazer com que cometa atos que ele próprio considera abomináveis? Que sentido tem o livre-arbítrio se uma alteração química no cérebro pode transformar uma pessoa com princípios éticos em um criminoso? Se somos realmente determinados pelo nosso cérebro, que sentido tem a moral, compreendida como criação do intelecto? Enfim: seria possível punir alguém por uma ação fraudulenta?


Os cientistas da mente questionam acerca desses pontos, em particular os pesquisadores que se dedicam ao estudo da consciência. A respeito disso, o biofísico Francis Crick (1916-2004), Prêmio Nobel em 1962 pela descoberta da dupla hélice de DNA, afirmou: “Nosso senso de identidade pessoal e de livre-arbítrio não são outra coisa senão o resultado do comportamento de um grande número de células neurais e de moléculas associadas a elas”. Crick foi personagem muitas vezes controverso devido a suas posições radicais em defesa de uma biologia essencialmente materialista, mas outro grande neurocientista e também filósofo, Daniel Dennett, atualmente professor da Universidade Tofts, nos Estados Unidos, trabalhou com ele em uma série de experiências conduzidas com o objetivo de estabelecer o quanto de “voluntário” existe nas decisões que tomamos.


Para estudar este momento crucial da consciência, os experimentadores submeteram um grupo de voluntários a uma ressonância magnética funcional, pedindo a eles que mexessem em determinados momentos o pulso de uma mão, e um relógio indicava o momento exato em que decidiam executar o movimento. O exame de imagem revelou que a ativação das áreas motoras pré-frontais, consideradas a “sede da vontade”, precede em cerca de 200 milésimos de segundo – um piscar de olhos – o momento em que o indivíduo tem realmente consciência de ter tomado uma decisão. Traduzindo: segundo os autores, a experiência demonstra que é o nosso cérebro que decide por nós – e não nós por ele. E o que o professor C. tem a ver com tudo isso? Certamente no seu caso a “decisão” de se tornar pedófilo foi tomada pelo cérebro, ou melhor, pela alteração provocada pela patologia.

O futuro imaginado

C. faz parte de um restrito círculo de pessoas que conseguiram demonstrar que não são responsáveis por um delito, embora tivessem consciência dele. Na prática, uma variante muito complexa da incapacidade de compreender e querer, porque os criminosos, nesses casos, entendem e desejam, mas o problema é que são guiados por seu cérebro doente. Psicólogos, em geral, chamam a atenção para o fato de o paciente gostar de pornografia, embora de maneira branda, mesmo antes de ficar doente, o que pode nos levar a considerar que a doença apenas teria “liberado” uma pulsão preexistente. Segundo o neurocientista britânico Steven Rose, o ser humano é determinado não só pela própria natureza biológica, mas também pela interação dela com o ambiente, em um delicado equilíbrio que ele define como “biossocial”. Na opinião de Rose, na prática, o cérebro tem a possibilidade de imaginar o futuro e, portanto, tomar decisões, considerando as consequências dos atos. “Vivendo como fazemos, na interface de múltiplos determinismos, nos tornamos capazes de construir o nosso futuro, mas sempre no âmbito de circunstâncias que não temos o poder de escolher”, disse Rose, que também aplicou ao caso de C. a teoria do livre-arbítrio do filósofo escocês David Hume. O pensador considerava o ser humano ao mesmo tempo livre e predeterminado. Para Hume, um pedófilo está predisposto a agir como tal por estar sujeito a intensos impulsos mas, se não for louco – em algum nível – tem a capacidade de evitar as tentações, ou pelo menos buscar ajuda para evitá-las.

Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/pedofilo_por_acidente.html

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