Poucas pessoas sinceramente revelariam ter medo de fantasmas, a ponto de se sentirem desconfortáveis quando sozinhas em casa à noite. No decorrer dos últimos anos, acompanhamos 21 pacientes cujas vidas, por muito tempo, vinham sendo perturbadas por suas atitudes e reações frente a “coisas sobrenaturais”. Uma inspeção atenta mostrou que sofriam de um tipo de fobia desde a infância ou adolescência, que acabou por prejudicá-los seriamente em setores importantes de suas vidas.
O propósito deste relato é chamar atenção para esta condição possivelmente comum e potencialmente tratável que, com frequência, passa despercebida, quer por ignorância, quer por constrangimento ou vergonha.
CASOS ILUSTRATIVOS
Caso 1
Um médico de 41 anos de idade veio ao consultório por causa de um episódio de depressão, do qual se recuperou em algumas semanas, com 150 mg por dia de venlafaxina. Ao retornar, casualmente indagou se o medicamento poderia ter reduzido seu medo de assistir a filmes de terror. Acrescentou que, desde criança, ficava “muito impressionado” com temas ligados ao sobrenatural. Quando lia ou ouvia alguém contar tais histórias, não conseguia dormir sozinho e ia para o quarto dos pais. Envergonhado, a vida inteira evitou contato com “esses assuntos”.
O paciente relatou que, depois do nascimento do primeiro filho, sua mulher passou a ir ao quarto do neném para fazê-lo dormir, e, caso ela pegasse no sono, ele arranjava uma desculpa para acordá-la e trazê-la de volta para o quarto, do contrário não conseguiria conciliar o sono. Seus medos se acentuavam caso ouvisse falar de temas sobrenaturais. As apreensões geralmente o assaltavam quando estava sozinho. Nestas ocasiões, ruídos inesperados imediatamente evocavam a lembrança de algum parente falecido ou trechos de filmes populares, como “A Profecia”. Quase paralisado de medo, pressentia a presença de alguém próximo de si, no ambiente, embora jamais o visse ou ouvisse de fato. Se, por alguma circunstância social, não pudesse deixar de assistir a algum filme de terror, as cenas mais carregadas retornavam repetidamente à mente, perturbando seu sono. Esta sensação persistia por algumas noites e, gradualmente, retornava aos níveis de antes da exibição. Filmes de suspense ou catástrofes não tinham qualquer efeito, desde que não abordassem elementos sobrenaturais.
Considerou que seus medos poderiam merecer atenção médica somente depois de, inesperadamente, se libertar deles com o tratamento antidepressivo. A história familiar revelou que o irmão mais novo também tinha medo de sobrenatural, e sua mãe, de almas penadas.
Caso 2
Uma recepcionista de hotel de 46 anos de idade, solteira, perdeu o pai por insuficiência hepática depois de vários anos de doença. Ela ficou muito contrariada por ter que vender o apartamento onde moraram desde sua adolescência, porque sua mãe decidira voltar para sua cidade natal, e ela simplesmente não podia suportar o medo de morar sozinha no imóvel. Havia percebido isso dias antes, quando a mãe passou um fim de semana fora. Na ocasião, perambulou inquieta pelo bairro a noite toda, passando parte do tempo em uma boate próxima por medo de ficar sozinha em casa. Embora, desde criança tivesse medo de fantasmas e do sobrenatural, o superava pedindo a primas ou sobrinhas que dormissem com ela. Com a doença do pai, passou a dormir no mesmo quarto “para assistir-lhe melhor, caso precisasse de alguma coisa durante a noite”. Depois do falecimento, todavia, tornou-se impossível para ela dormir sozinha, uma vez que imagens vívidas do funeral de seu pai teimavam em assombrá-la, forçando-a a acender as luzes do quarto ou acordar a mãe. Após o tratamento com terapia cognitivo-comportamental, sertralina e alprazolam, seu sono gradualmente se tornou mais regular e, aos poucos, ela sentiu-se mais confiante para dormir em seu quarto, desde que sua mãe estivesse em casa. Em três meses, sentia-se segura o suficiente para morar sozinha, concordando que sua mãe se mudasse. Atualmente, permanece em tratamento há cinco anos sem perda da eficácia terapêutica.
DISCUSSÃO
De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (APA, 2000), a fobia específica é o medo persistente de objetos ou situações claramente discerníveis, cuja exposição resulta em uma reação imediata de ansiedade ou apreensão. O estímulo fóbico é evitado ou tolerado com pavor, e a ansiedade fóbica interfere na vida de indivíduos comprometidos de modo significativo.
Nossos casos preenchem o diagnóstico de uma fobia situacional específica, não obstante, sua importância como causa de comprometimento social e ocupacional não foi ainda devidamente apreciada. A fobia do sobrenatural (FS) não está listada nos inventários tradicionais de sintomas fóbicos, sendo mencionada na literatura apenas tangencialmente. Por exemplo, “superstições como medo de casas mal-assombradas” foram utilizadas como exemplo de medos normais em crianças (Marks, 1970). Nossas observações indicam que a FS merece atenção médica e psicológica porque persiste na adolescência e na idade adulta, ocasionando comprometimento social e ocupacional, bem como perdas financeiras (um dos nossos pacientes sistematicamente recusava uma promoção na empresa por não conseguir viajar e dormir sozinho em hotéis).
A FS é tipicamente provocada pela situação de estar sozinho em casa à noite. Neste momento, a ansiedade se associa à sensação de “uma presença” (Critchley, 1955) ou anwesenheit (Thompson, 1982), ou seja, a impressão vívida de que alguma entidade imaterial, que não pode ser apreendida pelos sentidos naturais, nos observa de perto. O silêncio da noite e os ruídos fortuitos contribuem para intensificar o medo. A FS cede quase que instantaneamente se o indivíduo tem alguém ao seu lado. Acender as luzes, assistir à televisão, ou sair à rua pode, igualmente, mitigar os sintomas. Para muitos, apenas a menção de palavras relacionadas com a morte ou vida após a morte (cultos satânicos, sepultamento, cemitério) durante o dia basta para evocar a preocupação quanto à ansiedade noturna. É possível afirmar que a FS é específica para temas sobrenaturais pela ausência de sintomas fóbicos relacionados com eventos trágicos, tais como desastres naturais ou cenas de violência, desde que não evoluam para conversas sobre o “além-túmulo”.
O prejuízo do sono e o decaimento da produtividade diurna são algumas das principais consequências da FS. A conciliação do sono custa a ocorrer e, quando finalmente acontece, este é fragmentário e povoado por imagens e pensamentos assombrados. Os pesadelos envolvendo bruxas, feitiçaria e temas afins são comuns. Por estes motivos, a FS deveria constar nos inventários de insônia e sono de má qualidade.
O diagnóstico diferencial compreende terror noturno, psicose, ataques de pânico noturnos, outras fobias específicas e estados dissociativos do sono, condições facilmente excluídas por anamnese cuidadosa e caracterização dos sintomas em cada caso.
A FS começou cedo em todos os nossos casos. A maioria obtinha alívio ao dormir com os pais ou irmãos. A FS com frequência se apresentou acompanhada de outros tipos de fobia, como medo de voar em avião, de insetos e lugares fechados. É reconfortante para os pacientes informá-los de que o medo de fantasmas é o sintoma de uma condição bem conhecida, que pode responder à intervenção terapêutica, além de ser o passo inicial para o tratamento bem-sucedido.
Indivíduos com FS relutam em reconhecer o real motivo por trás de suas queixas de fadiga e insônia por acreditarem que seus medos fazem parte de sua natureza, ou que são estranhos o sufi ciente para serem ocultados dos outros. Por isso, a FS passará despercebida se não for diretamente investigada.
Os antidepressivos e os ansiolíticos associados à terapia cognitivo-comportamental podem trazer benefícios para aqueles cujo medo de fantasmas constitui uma causa de ansiedade, constrangimento e interferência na vida cotidiana.
Bibliografia:
APA - American Psychiatric Association 2000. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSMIV- TR™), 4th edition, text revision, Washington, DC: American Psychiatric Association.
Critchley M 1955. The idea of a presence. Acta Psychiatr Neurol Scand 30: 155-168.
Marks IM 1970. The classifi cation of phobic disorders. Br J Psychiatry 116: 377-386.
Thompson C 1982. Anwesenheit: psychopathology and clinical associations. Br J Psychiatry 141: 628-630.
Fonte: http://www.medcenter.com/Medscape/content.aspx?bpid=133&id=31456
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ResponderExcluirArrasou na materia. Me identifiquei e muito. Vou procurar ajuda de um psicologo. Não me sinto mais sozinho no mundo...Gratissimo!!!
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