Um século depois de Freud apresentar a ideia de que habita em nós uma instância sobre a qual não temos controle, a ciência busca estudá-la em laboratório.
Há mais de 100 anos o criador da psicanálise, Sigmund Freud, popularizou a ideia do inconsciente. Esse aspecto da mente abriga pensamentos, desejos e lembranças que, por seu teor excessivo, sexual ou violento, não suportamos manter por perto – e, por isso, são removidos para uma espécie de “porão” psíquico para que não tenhamos de lidar com eles a cada instante. Apesar de nossos esforços para manter esses conteúdos recalcados, eles continuam vívidos e vez por outra retornam mais ou menos disfarçados. Como esse aspecto não é, por definição, facilmente acessível, não é simples estudá-lo – embora se apresente inúmeras vezes por meio de atos falhos e no conteúdo dos sonhos, por exemplo. Depois de muitas abordagens psicológicas buscarem negar ou ignorar essa instância – o que, aliás, é compreensível, visto que parece realmente desconfortável ter um “estranho morando dentro de nós” –, a ciência tem se rendido e procurado compreendê-la melhor.
Atualmente o domínio da inconsciência, descrito mais genericamente no âmbito da neurociência cognitiva como qualquer processo que não permita a ativação da consciência, é rotineiramente estudado em centenas de laboratórios que usam técnicas psicológicas objetivas baseadas em análises estatísticas. Dentre tantos, dois experimentos revelam algumas capacidades da mente inconsciente. Ambos dependem do “mascaramento”, a ocultação de objetos da cena apresentada. Ou seja: as pessoas que participam dos estudos olham, mas simplesmente não veem o que seus olhos captam.
O primeiro experimento resultou de uma colaboração entre os pesquisadores Filip van Opstal, da Universidade Ghent, na Bélgica, Floris P. de Lange, da Universidade Radboud Nijmegen, na Holanda, e Stanislas Dehaene, do Collège de France, em Paris. Dehaene, diretor da Unidade de Neuroimageologia Cognitiva (Inserm-CEA, na sigla em francês), é mais conhecido por suas investigações sobre mecanismos cerebrais responsáveis por contas e números. Ele explora até que ponto uma simples adição ou uma média podem ser calculadas de forma automática – o que ele acredita que ultrapasse os limites da consciência. Somar 7, 3, 5 e 8 geralmente é considerado um processo cognitivo consciente e sofisticado. Porém, Van Opstal e seus colegas provaram o oposto de forma indireta, mas inteligente e bastante convincente.
Durante o experimento, a imagem de um conjunto de quatro números arábicos com um único dígito (1 a 9, excluindo o 5) era projetada rapidamente numa tela. Voluntários tinham de indicar, o mais rápido possível, se a média dos quatro números era maior ou menor que 5. Cada rodada era precedida por uma pista oculta que podia ser válida ou inválida. A pista consistia num flash mostrando outro conjunto de quatro números cuja média era menor ou maior que 5). Estes eram precedidos e seguidos por marcas hastag ou jogo da velha (#) no lugar dos números visualizados de relance durante o flash. As marcas efetivamente escondiam as pistas de modo que, conscientemente, não era possível ver esse conjunto de números. Convidar os participantes a adivinhar se a média dos quatro números escondidos era menor ou maior que 5 também não funcionou: ela era aleatória.
No entanto, a pista ainda influenciava a reação dos participantes. Quando a dica implícita era válida, a resposta final era conscientemente mais rápida que quando a pista era inválida. Na ilustração, a média dos quatro indícios invisíveis (3,75) é menor que 5, enquanto a média dos números-alvo visíveis é maior que 5. Resolver esse conflito requer mais tempo de processamento (cerca de 1/40 de segundo). Isso significa que a pista aciona a atividade neural representada pela declaração “menor que 5” que, por sua vez, interfere no estabelecimento imediato de uma associação de neurônios representando “maior que 5”. Essas pistas invisíveis e indetectáveis influenciam no comportamento e sugerem que “saber sem se dar conta disso” pode, de alguma forma, ajudar a estimar a média dos quatro números de um dígito. É pouco provável que nesses casos as pessoas ajam seguindo as regras algébricas precisas que as crianças aprendem na escola. Mas o processo pode basear-se na heurística (método para fazer descobertas). Por exemplo, para cada número maior que 5, realmente aumenta a probabilidade de o voluntário apertar o botão “maior que 5”.
Este é apenas o último de uma batelada de experimentos que demonstram a capacidade de “codificação do conjunto”, uma habilidade da mente de estimar, em poucos segundos, a expressão emocional dominante de uma multidão de rostos ou das dimensões aproximadas de pontos agrupados, mesmo que as faces ou os pontos isoladamente não sejam conscientemente identificados.
A possibilidade que temos de agrupar rapidamente todos os diferentes elementos contidos numa cena e colocá-los no mesmo contexto é uma das principais características da consciência. A forma como a mente conduz esse processo é muito intrigante. Talvez porque as vastas e intrincadas redes neurais do córtex cerebral que codificam as imagens tenham aprendido que certos objetos combinam, outros não (como os bots– programas que executam automaticamente tarefas repetitivas – que o Google e outros mecanismos de busca usam para vasculhar a internet e listar todas as ocorrências da web para disponibilizá-las prontamente na próxima busca). Considerando o número quase infinito de combinações de objetos e contextos, é possível que essa solução seja realizada pelo cérebro? Ou será que as técnicas de ocultação suprimem a visibilidade da imagem mas não impedem completamente o acesso consciente a elas? Somente mais pesquisas poderão responder a essas perguntas. Assim, talvez no futuro possamos finalmente conhecer a capacidade da inconsciência cognitiva e ter mais informações sobre o papel fundamental desempenhado pela consciência.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/sondando_o_inconsciente.html
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