Uma em cada três crianças nutre temporariamente uma relação existente apenas na fantasia – o que não é motivo para preocupação.
Vivemos tempos em que conversar com gente que nunca vemos não é nada incomum: perambulamos por chats, blogs e twitter e trocamos informações e segredos com pessoas com quem mantemos relacionamentos virtuais, às vezes bastante íntimos. Mas e quando uma criança “cria” um amigo imaginário – brinca, fala e até mora com ele, como se fosse real? Esse fenômeno, que surge principalmente entre 3 e 7 anos, não é tão raro. Quando pais e educadores percebem a existência desses companheiros invisíveis quase sempre ficam preocupados. Uma mãe escreve em um fórum on-line: “Nosso filho de 5 anos tem falado há três dias de 'sua amiga Pia'. Ela só existe em sua imaginação, mas parece ser absolutamente real para ele. Ele se comporta como se pudesse vê-la! Nós não tivemos esse tipo de experiência com sua irmã três anos mais velha. A amizade com 'Pia' parece fazer bem ao nosso filho, mas nós nos preocupamos mesmo assim. Será que devemos deixá-lo com sua fantasia ou tentar convencê-lo a abandoná-la?”.
Mas os pais podem respirar aliviados, pois todos os estudos sobre esse fenômeno chegam ao mesmo resultado: não há motivo para preocupações! Os amiguinhos imaginários têm sido estudados de forma intensiva há muito tempo, nos últimos 100 anos, mas poucos psicólogos se dedicaram a esse tema. E há um ponto em comum: todos concordam que os amigos imaginários estimulam o desenvolvimento das crianças, podem suprir eventuais lacunas afetivas e ajudam na elaboração de questões psíquicas.
Para os mais novos, o amigo “de mentirinha” é quase sempre um companheiro de brincadeiras que pode estar “presente” também à mesa na hora das refeições, ser chamado pelo nome, mas não raramente acompanha a criança durante todo o dia. Alguns pesquisadores afirmam que praticamente todos nós temos um parceiro imaginário em um determinado estágio do desenvolvimento – porém, ele quase nunca é descoberto pelos adultos e a própria pessoa normalmente não se lembra disso mais tarde.
Os acompanhantes invisíveis são frequentemente crianças da mesma idade de seus criadores – como, por exemplo, Sebastian Nigge, o amigo imaginário de Madita, personagem do livro de mesmo nome, de Astrid Lindgren. Podem ser também animais, magos ou super-heróis. Alguns cabem no bolso e podem ser levados para todo lugar – como o canguru invisível Pantouffle no filme de Hollywood, Chocolate, de 2000, dirigido por Lasse Hallström.
Os pequenos também dão vida a um bicho de pelúcia ou a uma boneca de que gostam muito ao lhe atribuírem personalidade própria. Com isso, os amigos visíveis como Hobbes (ou Haroldo na versão brasileira) – o tigre de pano dos quadrinhos americanos Calvin e Haroldo – também se tornam companheiros imaginários. Os estudos nos quais esse artigo se baseia concentram-se, porém, no fenômeno dos amigos totalmente invisíveis e semelhantes aos seres humanos.
Uma das primeiras descrições do fenômeno é um estudo publicado no século XIX, em 1895, feito pela pedagoga Clara Vostrovsky, da Universidade Stanford: o caso de uma garotinha que teve vários amigos imaginários até a idade adulta. Desde então, novos estudos mostravam que entre 20% e 30% das crianças têm, pelo menos temporariamente, um ou mais acompanhantes invisíveis.
Não raro, pais, professores e terapeutas incomodam-se não apenas com o fato de as amizades imaginárias serem mantidas por um longo tempo, às vezes por anos, mas também com a nitidez com que as crianças parecem ver seus amiguinhos. Mas os pequenos sabem muito bem que seus parceiros não são reais e que só existem em sua imaginação. Ou seja: essas criações psíquicas podem ser claramente diferenciadas de fantasias patológicas, que ocorrem, por exemplo, nas psicoses. A criança nunca se sente indefensavelmente dominada pelo amigo que criou – pelo contrário, pode modelar, modificar e manipular sua invenção como quiser. E também determinar a duração desse “relacionamento”.
Companheiros imaginários podem ter funções variadas. Algumas crianças e jovens iniciam essa amizade quando se sentem sozinhos. O estudo de 2004 de um grupo de trabalho coordenado pela psicóloga Marjorie Taylor, da Universidade de Oregon, também aponta nessa direção. Os pesquisadores entrevistaram 152 crianças em idade pré-escolar e descobriram que aproximadamente 70% com idades entre 5 e 6 anos que tinham amigos imaginários eram primogênitos ou filhos únicos.
Estudos anteriores desse mesmo grupo com crianças e adolescentes mostraram que amigos imaginários apareciam principalmente quando surgiam mudanças drásticas: a mãe ficava grávida ou um irmãozinho nascia; quando um dos pais estava ausente devido a frequentes estadias no hospital ou depois que uma pessoa considerada referência afetiva morria. Também no caso de separação dos pais ou de amizades que se rompiam, por exemplo, devido a uma mudança de casa, os amigos imaginários ajudavam na superação. Pesquisadores relatam o caso de uma menina de 10 anos que sofria de grande solidão. Sua mãe estava em tratamento havia dois anos, devido a uma forte depressão, e desde então a menina ficava frequentemente sozinha e tinha de cuidar de si mesma. Nessa situação, ela inventou um irmão imaginário totalmente dependente dela, ao qual ela dispensava atenção materna – assim como provavelmente gostaria de ter sido tratada. Às vezes, passava dias deitada na cama, mergulhada em uma conversa interminável com seu irmão invisível. Quando a mãe recebeu alta e voltou para casa, ele desapareceu de um dia para outro.
De tempos em tempos, portanto, crianças e adolescentes compensam a realidade com a ajuda providencial do parceiro imaginário e assim combatem sentimentos de abandono, solidão, perda ou rejeição. É possível, assim, desfrutar de um relacionamento de amor e apoio, além de companhia – independentemente das circunstâncias externas. Como consequência, essas figuras quase sempre desaparecem assim que a criança encontra amigos reais ou se adapta à nova situação.
Essa função pode explicar por que também pessoas idosas têm eventualmente amigos imaginários – o que até agora quase não foi estudado. O psiquiatra canadense Kenneth Shulmann relatou em 1984 o caso de três pacientes com mais de 80 anos que haviam perdido pessoas queridas recentemente. Os três fizeram seus companheiros falecidos reviverem em sua imaginação, embora evitassem falar sobre o assunto com outros, o que foi avaliado por Shulman como um indício de que eles tinham consciência da natureza ficcional de suas criações.
PRAZER E COMUNICAÇÃO
Em seus extensos estudos sobre o desenvolvimento da inteligência infantil, o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) também deparou com os amigos imaginários. Ele os interpretou como uma forma especial do jogo simbólico. Segundo o estudioso, em situações lúdicas uma realidade estranha seria construída: as crianças fingem e desempenham papéis. Piaget relatou sobre o companheiro imaginário de sua filha de 3 anos, Jacqueline. O personagem dominou a atenção da menina durante dois meses, ajudava-a em tudo o que estava aprendendo, estimulava-a a respeitar regras e a consolava quando estava triste. De repente, desapareceu.
Piaget não atribuiu a criação do amigo de sua filha à solidão ou a condições de vida difíceis. Via nele muito mais uma prova de criatividade e prazer comunicativo. Essa ideia foi comprovada mais uma vez em 2008 por um estudo dos psicólogos Anna Roby e Evan Kidd, da Universidade de Manchester. Eles testaram a capacidade linguística de 44 crianças em idade pré-escolar e escolar. Aquelas que tinham um companheiro imaginário costumavam se expressar melhor e se colocar no lugar do interlocutor, o que faziam inclusive com prazer. Um estudo que realizei com 241 adolescentes em 2000 teve resultado semelhante: os jovens com amigos imaginários apresentaram mais qualidades sociais, como empatia, do que aqueles sem um acompanhante invisível.
Estudos sobre comportamentos lúdicos comprovam que principalmente crianças maduras e psicologicamente estáveis têm amigos imaginários. Assim, o sociólogo britânico David Finkelhor, da Universidade de New Hampshire em Durham, nos Estados Unidos, foi um dos pesquisadores que demonstraram que quanto pior for o estado físico e psíquico das crianças, menos serão capazes de brincar. O abuso ou a negligência fazem com que a imaginação se atrofie e inibem a propensão ao jogo – em geral, essas crianças não criam acompanhantes imaginários.
Os amigos inventados, porém, podem surgir quando a criança tem dificuldades em se submeter às regras dos adultos. Então o parceiro virtual simplesmente se permite fazer aquilo que é proibido a seu criador. Obviamente, os novos amigos são os culpados quando os pais descobrem a lata de bolachas saqueada ou são vítimas de alguma traquinagem. Muitas crianças até mesmo punem seus cúmplices invisíveis pelos delitos – o que naturalmente não impede os amigos de voltar a se portar mal.
Os parceiros inventados cumprem função semelhante quando servem de conselheiros morais. Quando estão na pré-escola, as crianças ainda precisam de um interlocutor externo para se certificar de que estão agindo de forma correta. Nesse caso, um amigo imaginário pode ocupar essa brecha. Geralmente, eles surgem em períodos em que seus criadores realizam grandes saltos de desenvolvimento cognitivo e oferecem às crianças a possibilidade de expressar sentimentos e impulsos.
Geralmente amigos imaginários tomam forma a partir do terceiro ano de vida, quando já é possível diferenciar entre o eu e o outro. Em 1988, o psicólogo Paul Harris, da Escola de Medicina de Harvard em Boston, acompanhou 221 crianças com o objetivo de detectar quão bem podiam separar a fantasia da realidade. Por volta dos 3 anos não havia mais confusões entre pessoas reais e inventadas, fossem seres imaginados por elas mesmas ou figuras de contos de fadas, histórias ou filmes.
A fantasia e a criatividade se modificam no decorrer do desenvolvimento. Crianças em idade pré-escolar frequentemente mostram aptidão para o chamado jogo ilusório ou ficcional, no qual partindo de poucos traços um objeto ou um personagem são construídos. Assim, uma fileira de cadeiras se transforma, por exemplo, em um “trem” num piscar de olhos. Na idade escolar a criatividade aumenta e, na adolescência, alguns jovens começam a escrever diários, uma forma muito particular de vivenciar a própria criatividade e imaginação. Para atingir esse estágio é necessário primeiramente uma compreensão madura da intimidade: crianças ainda não diferenciam entre informações “privadas” e “públicas”. Somente por volta dos 10 anos é possível compreender o que significa privacidade. Dessa fase em diante as informações sobre a própria pessoa ou sobre outros podem ser conscientemente mantidas em segredo ou manipuladas. Cerca de 40% das meninas confiam seus pensamentos pessoais a um diário (no caso dos meninos da mesma idade, esse índice é claramente mais baixo).
Com o aumento da idade, altera-se não apenas a percepção de si mesmo e das importantes pessoas de referência, mas também dos companheiros imaginários. Crianças de 4 a 6 anos, por exemplo, caracterizam muitas vezes a si mesmas e a outros por meio de atividades ou traços externos: “sou loiro”, “brinco com carrinhos”. Somente na adolescência usam aspectos da personalidade para se descreverem: “sou tímida” ou “sou generosa”. Esse conhecimento sobre a própria pessoa surge somente por meio das relações com outros, que se tornam cada vez mais significativas com o passar dos anos.
Não apenas as amizades reais, mas os companheiros imaginários também se modificam com o tempo, como demonstrou uma avaliação de vários estudos de longo prazo realizada por mim em 2008. No período pré-escolar são características as relações embasadas em uma interação física momentânea: “Somos amigas porque nós duas gostamos de brincar de boneca!”. Por volta dos 7 ou 8 anos os parceiros recebem e oferecerem ajuda – nessa fase a amizade orienta-se principalmente por vantagens próprias. Mas as crianças já atentam para um relativo equilíbrio de poder: “Eu te empresto minha bicicleta se você me deixar brincar com a sua bola”. Esses relacionamentos são mantidos também com os amigos imaginários.
No início da adolescência, por volta dos 12 anos, a troca emocional com o amigo ou amiga torna-se importante, os companheiros conversam essencialmente sobre problemas. A quebra da confiança é, nesse estágio, o motivo mais frequente para o término da amizade: jovens esperam que um bom companheiro lhes faça confidências e que saiba ouvir e guardar segredos. As meninas valorizam a confiança mútua nas amizades mais do que os meninos e tendem a contar suas experiências íntimas umas às outras.
Sucesso da Broadway nos anos 40, a comédia Meu amigo Harvey foi transformado em filme em 1950: protagonista é acompanhado por um coelho branco invisível de 2 metros de altura.
Essas modificações resultam em uma exclusividade crescente das relações: enquanto crianças mais novas ainda brincam com qualquer um, sem selecionar, o círculo de amizades torna-se posteriormente cada vez mais restrito a poucos com visões de mundo semelhantes e com estes é possível estabelecer trocas mais afetivas. O aumento da necessidade de adolescentes de uma “alma irmã” explica por que nessa faixa etária quase sempre jovens solitários criam companheiros imaginários: para se consolar e não se sentir tão sozinhos.
Em minhas análises de entrevistas com centenas de adolescentes ficou claro que os amigos imaginários frequentemente surgem nos diários dos jovens. Os autores têm longos diálogos com seus parceiros invisíveis: os chamam pelo nome, contam fatos vividos em detalhes (“obviamente, você não poderia saber...”, “esqueci de contar...”) e ao fim da conversa sempre se despedem deles. Em nossa amostra, isso ocorreu em um terço dos diários de meninos e em até 60% das meninas. Os jovens refletiam muito sobre o relacionamento com seus companheiros imaginários e depois anotavam as reflexões em forma perguntas ou comentários. Muitas vezes, eles também convidavam o interlocutor a assumir, criticar ou julgar seu próprio ponto de vista.
Nesses casos, tinham evidentemente uma ideia muito exata de seus amigos inventados. Curiosamente, os jovens de ambos os sexos escolhem amigas imaginárias com mais frequência – 75% dos meninos e 61% das meninas – e inventam uma pessoa que se assemelhe a eles em traços essenciais. Rapazes muitas vezes criam uma cópia feminina perfeita de si mesmos, que se assemelha a eles não apenas em idade e aparência, mas também em personalidade. As meninas, por sua vez, criam ocasionalmente parceiras que se diferenciam delas em características importantes.
Com o aumento da idade, traços centrais da personalidade do amigo se modificam – assim como os do próprio autor –, às vezes ele recebe até um novo nome. Aqui, um exemplo de Tina, de 18 anos: “Durante um tempo, eu a chamei de 'Cordula'. Agora ainda escrevo para ela, só que não mais de forma tão personificada – quase sempre sem um nome, mas ainda me refiro a ela”.
No decorrer da adolescência, os parceiros invisíveis parecem se tornar menos nítidos, adolescentes mais velhos quase não os mencionam. Aliás, entrevistamos escritores de diário mais uma vez alguns anos mais tarde e contatamos que realmente pouquíssimos conseguiram lembrar-se de seus amigos imaginários! Se o acompanhante imaginário cumpriu sua função, ele aparentemente não só é deixado de lado, mas também esquecido – um sinal de que as crianças conseguiram dar mais um passo em seu desenvolvimento de forma criativa.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/amigos_imaginarios.html
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