terça-feira, 22 de novembro de 2011

Um salão de recordações que você mesmo constrói.

Técnicas usadas na Grécia antiga ajudam até hoje a conquistar prêmios, mas também são úteis para recordar os itens de uma lista de compras.



O prato principal do elegante jantar estava sendo servido no enorme salão grego quando o teto abobadado veio abaixo, esmagando todos os convidados. Apenas o poeta Simônides, que havia saído pouco antes da tragédia, sobreviveu. Nos dias seguintes, trabalhadores que retiravam os pesados escombros chegaram à conclusão de que seria impossível identificar as vítimas, terrivelmente desfiguradas. Simônides foi de grande ajuda. Revendo mentalmente toda a extensão da longa mesa, descobriu que podia reconstituir, pela disposição dos assentos, o local em que cada um se sentara. E assim, com base nos lugares onde os corpos foram encontrados, indicou os mortos, um por um.

Quatrocentos anos depois, o político, escritor e orador romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) relatou a história de Simônides em um de seus manuais sobre aprendizado e memória. Cícero escreveu que, de acordo com a lenda, o desmoronamento do teto motivou o poeta a desenvolver uma técnica de memória visual que perdurava quatro séculos depois e era amplamente usada pelos políticos e advogados do Império Romano. Esses profissionais eram olhados com desprezo se não conseguissem memorizar os longos discursos que faziam com freqüência; para eles era importante descrever os complexos meandros de uma argumentação e emocionar a audiência.

Os recursos mnemônicos que Simônides descobriu mostraram ser artifícios poderosos. Cícero deixou bem clara a lição em seu livro: a memória fica muito bem servida quando uma lista de nomes, objetos ou idéias é disposta visualmente. Muitas pessoas que exibem extraordinária capacidade de recordar usam essa técnica e, entre elas, estão vencedores de campeonatos mundiais de memória. Embora o método pareça estranho a princípio, qualquer um pode usá-lo para se lembrar com mais facilidade tanto de uma lista de compras quanto de rascunhos de palestras. Uma vez que se encontre um modo de “ver” os itens é só usar o “truque”. A maioria dos livros que ensinam práticas para melhorar a memória ou a acuidade mental sugere esse método e se vale de estratégias modernas que partem da abordagem antiga.

ALMOFADAS DE SABÃO
O recurso mnemônico, conhecido como “método dos locais”, consiste em colocar imagens mentais de diferentes itens em vários locais de uma sala que se conheça bem, numa ordem específica. A pessoa pode “caminhar” mentalmente pelo ambiente e visualizar os objetos que deseja relembrar, “deixando-os” um em cada ponto daquele ambiente. Cada um costuma desenvolver seu próprio sistema de localização. Na Antigüidade, os professores recomendavam usar lugares públicos, como os templos, como “canteiros” para treinamento da memória espacial. Como se estivesse dentro do edifício, o sujeito deveria memorizar a posição de cada coluna e estátua, a começar pela entrada principal, passando ao longo da parede à sua direita, voltar pela parede à esquerda e assim por diante. Cada item da lista seria então relacionado a uma coluna, estátua ou outro detalhe, seguindo determinada ordem. Mais tarde, a pessoa visualizaria a sala para encontrar cada objeto.

Hoje, a própria casa costuma ser a melhor escolha para esse tipo de exercício. Para começar, é preciso definir uma rota específica através de cada cômodo da residência e colocar em ordem os objetos. Por exemplo, num certo apartamento há um hall de entrada, onde estão uma mesinha, um espelho, um porta-chaves na parede, tapete e a porta do armário embutido. A seguir, fica a sala de estar, com sofá, talvez um aparelho de ar-condicionado, televisão e lustre. É importante obedecer sempre à mesma seqüência, a fim de gravar na mente um sistema fixo de localização, que pode representar itens-padrão como cartas de baralho ou ainda ser ampliado para permitir novos acréscimos sempre que nova lista for necessária.

Digamos que você vá ao supermercado e tenha nove produtos para comprar: ovos, queijo, macarrão, peixe, pão, sabão, manteiga, salame e cereais. Imagine três ambientes em sua casa, cada um deles com três itens da lista. Você entra no vestíbulo e pendura a chave no chaveiro em forma de um pão. Anda sobre o tapete, mas ele é feito de fatias de salame; olha em um espelho e em sua superfície estão grudados dois ovos fritos. Na sala de estar, o televisor virou um aquário, no qual nada um peixe grande. Você olha na direção do aquecedor, em cima do qual está uma barra de manteiga, derretendo, que pinga no sofá, cujas almofadas são feitas de barras de sabão. No quarto onde está o computador você vê um ratinho, sobre o teclado, mordiscando um pedaço de queijo. Na prateleira em cima há uma caixa de cereais e o varal no alto da janela sustenta cortinas feitas com fios de macarrão entrelaçados.

Cada “estação” – como o espelho e o sofá – está agora relacionada a um determinado item. Se a lista da semana que vem contiver barras de chocolate mas não cereais, então a prateleira será feita de chocolate. Dessa maneira, você pode lembrar várias listas de compras, com itens que você compra sempre, como ovos, aparecendo regularmente, e itens ocasionais – como barras de chocolate – esporadicamente.

Uma vez que você tenha trabalha do com uma seqüência estabelecida por algum tempo – digamos, dez localizações em cada uma das três salas –, é possível acrescentar mais ambientes, o que faz aumentar a capacidade de armazenamento de memória. Mas é preciso treinar com afinco para a estratégia funcionar. “Sem a prática constante, as regras serão praticamente inúteis. Certifique-se de que terá tantas localizações disponíveis quanto possível. A inserção de imagens precisa ser praticada diariamente”, informa um anônimo livro romano de retórica Ad Herennium. Alunos aplicados da disciplina conseguem acumular um incrível número de localizações.

Nas atuais competições de memória os participantes chegam a memorizar mais de mil números em seqüência ou cartas de jogo embaralhadas ao acaso em múltiplos maços. Alguns indivíduos conseguem repetir um longo poema inteirinho depois de ouvi-lo apenas uma vez – e até recitá-lo com os versos em ordem contrária.

A chave para o sucesso nesse tipo de técnica é a familiaridade que o praticante tem com o sistema de localização e isso precisa permanecer imutável. Por isso a prática tem tanta importância. Igualmente, a compilação de itens de uma lista precisa ser feita de maneiras criativas, com o uso de imagens que chamem a atenção ou que sejam extravagantes – como ovos no espelho ou um sofá com almofadas de sabão. A obra Ad Herennium explica isso em termos simples e lógicos: quando “vemos ou ouvimos algo estranho, que fuja do convencional, inacreditável ou ridículo, provavelmente pensaremos nisso por muito tempo e com mais insistência do que dedicamos a fatos corriqueiros”. Sóis nascentes e crepúsculos são freqüentes, mas um eclipse solar não é candidato ao esquecimento. Daí a importância de escolher imagens que produzam ressonância emocional.



É assim que os campeões de memóriatrabalham. Eles usam outros truques aos quais qualquer pessoa também pode recorrer. Por exemplo, palavras-lembranças são valiosas quando alguém nos é apresentado. Joana vira “banana”, Tony vira “pônei”, e Amanda, “panda”. Também é possível usar a memória para relacionar nomes com coisas em determinado contexto: você pode lembrar como se chamam os novos vizinhos, Alexandre e Serena, respectivamente, associando-os a telefone (de Alexander Graham Bell, seu inventor) e raquete de tênis (Serena Williams, campeã do esporte). Com a prática, não é difícil construir os próprios mapas visuais em amplos graus. Um antecessor dos campeões de memória de hoje foi Pedro de Ravena, jurista do fim da Idade Média e autor de um manual em latim sobre estratégias de memória. Ele viajava muito pela Itália e, quando chegava a alguma cidade, visitava igrejas e mosteiros e memorava a planta dessas construções. Com o tempo ele construiu uma impressionante coleção de espaços relembrados – mais de 100 mil localizações. Não é possível afirmar com certeza se esse número era verdadeiro ou não; mas ele recitava em público livros inteiros de Direito com comentários, inúmeras passagens da Bíblia e ainda centenas de citações clássicas. Em face dessas proezas, não há por que imaginar que o resto da humanidade – ou seja, todos nós – não seja capaz de memorizar tranqüilamente a lista do supermercado.

ATLETAS DA MENTE
Entre os dias 19 e 21 de agosto deste ano, pela primeira vez, três brasileiros participarão do Campeonato Mundial de Memória, em Londres: Ricardo Kossatz, Eduardo Costa e Alberto Medeiros. Eles devem cumprir dez provas e esperam, além de vencer, difundir técnicas de memorização.

O evento, realizado há 15 anos, é uma espécie de decatlo de disciplinas de memória. Num nos testes, os competidores têm de recitar com exatidão um poema ainda não publicado, sem rimas, linha por linha, incluindo toda a pontuação e a ortografia. Os competidores têm 15 minutos para decorá-lo e o dobro do tempo para reproduzi-lo. Outra prova exige a memorização de tantos dígitos binários quanto possível em meia hora (por exemplo, 010110100).

No exame de nomes e rostos, os atletas mentais recebem cem fotos de pessoas de várias nacionalidades, com a identificação embaixo de cada imagem. Os competidores têm 15 minutos para estudá-las. Em seguida, recebem de novo as mesmas fotos embaralhadas, sem nomes. Eles dispõem de meia hora para escrever nome e sobrenome correspondentes às fotos; cada acerto vale um ponto. Em 2004, o inglês Bem Pridmore, vencedor da competição, em Manchester, Estados Unidos, derrotou 22 pessoas de nove países. No mesmo concurso, o britânico Andi Bell venceu essa etapa, acertando 176 dos 200 nomes da lista.

Outra etapa importante do torneio é a prova de memorização de cartas de jogo. Os participantes recebem maços embaralhados e têm 60 minutos para memorizar quantas puderem, na ordem em que lhes foram dadas. O campeão Ben Pridmore recordou-se de 1.144 cartas – o equivalente a 22 baralhos completos. O campeonato internacional Memória é organizado pelo Conselho Mundial de Memória de Surrey, Inglaterra. Informações e testes de amostra estão disponíveis no site www.worldmemorychampionship.com para os interessados.

Colares e saltos altos
Por Andreas Krauss

Acostumado a competir em eventos mundiais da modalidade, o administrador de um internato em Meclemburgo, Alemanha, Steffen Bütow, toma seu próprio apartamento como referência espacial, utilizando a técnica desenvolvida pelos gregos na Antigüidade. Ele recorreu ao artifício na competição com baralho. Depois de memorizar um maço de cartas de jogo no menor tempo possível, ele deveria embaralhar um novo maço na mesma ordem em cinco minutos. Bütow examinou as lâminas, uma por uma, por apenas 46 segundos, bloqueou luz e ruídos com uma venda e um fone de ouvido para se concentrar e gravar a ordem em sua cabeça.

Como números e símbolos são abstratos demais para permanecer na memória, ele associou cada carta como um objeto, o que lhe permitiu criar uma espécie de apresentação de slides mentais com 52 imagens. A primeira carta era o 2 de espadas, que se tornou um cisne no guarda-roupa do quarto do administrador. A segunda, o 8 de ouro, virou um colar pendurado na luminária de sua cabeceira. O 7 de paus se transformou num chicote em seu travesseiro. A rainha de copas ele fixou como saltos altos debaixo da cama. Mas ele não estava apenas imaginando os objetos, tinha praticado durante horas na calma de seu apartamento, identificando as 52 cartas com 52 objetos. Sempre que recebe um maço recém-embaralhado, ele visualiza sempre a rainha de copas como saltos altos debaixo da cama; assim, a tarefa dele é visualizar a ordem correta de itens para reembaralhar um segundo maço da mesma maneira que o primeiro.

Para reordenar o maço, Bütow “passeia” por um conjunto de rotas que já percorreu centenas de vezes, do guarda-roupa à poltrona, passando pela escrivaninha e pela lâmpada de cabeceira, até a cama e a janela. Quanto mais imaginativas ou mais excêntricas as associações, tanto mais facilmente ele conseguirá reproduzir a ordem mais tarde; lembramos situações de maior carga emocional do que as neutras. Bütow conseguiu memorizar mais de 40 rotas diferentes, com mais de 2.500 paradas, o que lhe garantiu capacidade suficiente para muitos torneios de memória.

Durante competições, Bütow simplesmente imagina que está em casa, sentado à mesa em que treina de uma a duas horas cada noite, depois que seus filhos vão dormir, e “passeia” insistentemente por suas rotas e associações de cartas. Ele não tem dúvidas de que, para alguém se tornar bom memorizador é preciso, principalmente, trabalhar duro. Bütow diz que não conhece competidor algum naturalmente dotado de memória fotográfica.

ANDREAS KRAUSS é jornalista especializado em biologia e ciência em Berlim.

TESTE SUAS HABILIDADES

Pegue papel, lápis e cronômetro. Durante exatamente cinco minutos memorize os números na primeira lista. Em seguida, cubra a lista e escreva os números na ordem em que os memorizou. Faça o mesmo teste, no mesmo tempo, com a lista de palavras e de cartas de baralho. Se preferir, “espalhe” objetos e cartas pela casa, como faziam os gregos.



Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/um_salao_de_recordacoes_que_voce_mesmo_constroi.html

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