Pacientes com a síndrome de Cotard, um tipo raríssimo de delírio de negação, têm certeza de que já estão mortos – e com isso, cultivam a ilusão da imortalidade.
“Estou morta. Não sou nada. Nunca serei nada. Estou completamente morta. Sou uma morta-viva; meu corpo é apenas poeira. Logo minhas pernas não me carregarão mais... Meus pulmões são de um cadáver. Podem me radiografar que não encontrarão nada. Dentro do meu corpo há apenas pó. Sou um cadáver que anda para que ninguém me enterre... Não há mais dinheiro para me enterrar. É preciso me jogar na vala comum. Sou um cadáver que anda, uma morta-viva, uma morta que ressuscitou três vezes. Sou imortal... sou um cadáver grávido. Ando para alimentar o bebê, que também está morto. Engravidaram um cadáver... e eu estou muito, muito gorda.”
O diálogo fragmentado da paciente do psiquiatra francês Jules Cotard (1840-1889) parece saído de algum filme de terror. Mas não haveria surpresa se essas palavras fossem cunhadas por escritores como Fernando Pessoa, Edgar Alan Poe ou Machado de Assis. Felizmente nem o grande poeta português nem o magistral escritor brasileiro navegaram nas sombrias águas do delírio de negação. Alguns biógrafos, porém, atribuíram sintomas semelhantes a Poe, no final de sua conturbada carreira de poeta e contista genial.
O curioso é que quando alguém diz - e acredita – que morreu confere a si mesmo a epígrafe da imortalidade. Para os psiquiatras, a certeza do paciente de que está morto é conhecido como delírio de negação ou de imortalidade. O principal responsável pela descrição e divulgação dessa raríssima síndrome foi Cotard, que se imortalizou com a descrição da síndrome que leva seu nome. Sua notoriedade na psiquiatria do seu tempo passou à literatura ao ser transformado em personagem de Proust, citado logo na abertura do romance À sombra das raparigas em flor.
Em 28 de junho de 1880, em sessão da Société Médico-psychologique de Paris, Cotard apresentou o caso de uma mulher de 43 anos que acreditava que “não tinha cérebro, nervos, seios ou entranhas, que era somente pele e osso e que nem Deus e o diabo existem”. Dizia não necessitar de alimentos porque “era eterna e viveria para sempre”. Havia pedido para ser queimada viva e fizera várias tentativas de suicídio.
Cotard tinha consciência de que casos parecidos haviam sido descritos por vários psiquiatras, dentre eles Jean-Étienne Dominique Esquirol (1772-1840). O diagnóstico que Cotard fez da sua paciente é de que ela apresentava o que então era conhecido por lipemania (categoria proposta por Esquirol para definir um episódio de depressão psicótica). Cotard admitia que o delírio hipocondríaco resultava de “uma interpretação da sensação patológica geralmente presente em pacientes com melancolia ansiosa”. Ele sugeriu ainda que uma forma similar de delírio deve ter contribuído para propagar a crença na chamada demoniomania.
Cotard estava convencido de que havia encontrado um novo tipo de lipemania, cujas principais características seriam melancolia ansiosa, idéias de danação ou possessão, comportamento suicida, insensibilidade para a dor, delírios de imortalidade e de não-existência envolvendo a pessoa como um todo ou partes do corpo.
Dois anos depois de expor o caso da paciente aos colegas da sociedade francesa, Cotard retornou ao tema e introduziu o termo delírio de negação – nihilistic delusions, em inglês. Inúmeras causas foram posteriormente arroladas como responsáveis pela síndrome. Dentre elas, doenças cerebrais degenerativas, atrofias localizadas ou generalizadas, traumas de crânio, sendo atribuído papel especial às lesões nos lobos parietais. No entanto, as explicações definitivas para o mecanismo fisiopatológico dessa síndrome permanecem obscuras.
PARECE MAS NÃO É
O médico Anthony Joseph e seus colaboradores do departamento de psiquiatria do Hospital McLean e do centro de Saúde Mental de Massachusetts, bem como seus colegas do departamento de radiologia do New England Deaconess Hospital, em Boston, examinaram com tomografia computadorizada oito pacientes com a síndrome de Cotard, dos quais três eram esquizofrênicos, três tinham uma forma grave de depressão e dois sofriam de transtorno bipolar. Todos apresentaram algum tipo de alteração na tomografia cerebral. Os achados mais proeminentes foram as atrofias que afetam mais os lobos frontais e temporais do que os parietais e occipitais. Embora dessas conclusões tenham surgido evidências de organicidade na origem dos sintomas, ainda reina uma considerável incerteza sobre o fenômeno.
Com a cautela peculiar perante toda hipótese científica, o neurocientista Vilayanur Ramachandran propõe uma teoria com uma lógica interna surpreendente, quase imperiosa, que pode lançar um pouco de luz sobre a nossa compreensão do fenômeno. Segundo o pesquisador, a hipótese é similar à explicação que ele próprio aventou para a síndrome de Capgras. Nesta, mais comum, porém não menos estranha, os pacientes se tornam absolutamente convencidos de que pessoas próximas (filhos, cônjuge, amigos etc.) foram substituídas por impostores. “Ela é, em tudo, parecida com minha mulher, mas não é minha mulher.” O delírio, em alguns casos, diz respeito a ambientes, lugares. O paciente se encontra na casa onde passou toda a sua vida e diz: “Esta não é a minha casa, embora se pareça com ela”.
Lembro-me de um paciente que visitei em casa a pedido da família, aterrorizada com a alegação que ele fazia de que não estava em sua própria casa e que aquela que se dizia sua mulher (e com a qual convivera durante quase 50 anos) era uma impostora. Perguntei-lhe se reconhecia os móveis no quarto onde estava acamado. Respondeu-me com veemência: “É claro que reconheço!”. Apontei-lhe um quadro na parede, depois um livro que retirei da estante. Ele não vacilou um segundo sequer: “Reconheço, é exatamente igual ao que tenho em minha casa. Mas esta não é a minha casa”. Quando lhe perguntei se poderia explicar o fato, respondeu: “Só pode ser um complô que aprontaram contra mim”.
Ramachandran admite que as lesões cerebrais subjacentes a essas duas síndromes provocam desconexão entre áreas corticais responsáveis pelo reconhecimento facial e o sistema límbico, principal modulador da emoção. De acordo com essa hipótese, os pacientes com síndrome de Capgras não conseguem associar emoção à visualização de um rosto ou lugar – e tendem a negá-los. “Parece-se com ele, mas não é ele” é a expressão comumente ouvida quando se trata de Capgras.
O pesquisador Russel Bauer, da Universidade da Flórida, propôs que há duas vias para o reconhecimento de faces. A principal vai do córtex visual para o lobo temporal, passando através do fascículo longitudinal inferior, a chamada via ventral, que corresponde ao sistema responsável pelo reconhecimento consciente. A outra, chamada via dorsal, carreia estímulos entre o córtex visual e o sistema límbico pelo lobo parietal inferior. Essa via confere significado emocional à face; é por isso que, quando a via ventral é seletivamente danificada, o paciente pode reconhecer determinado rosto num nível inconsciente. Na lesão seletiva da via dorsal, o paciente não consegue associar emoção à imagem visualizada, explicando dessa forma a espantosa manifestação clínica dos portadores da síndrome de Capgras.
Para Ramachandran, na síndrome de Cotard, a desconexão tem dimensão mais abrangente. Em vez de ocorrer apenas a desconexão das áreas visuais que se tornariam isoladas dos centros cerebrais da emoção, todos os sentidos ficariam desconectados dessas áreas. Uma vez ocorrida a desconexão entre essas regiões, a única forma de o paciente interpretar seu completo isolamento emocional é acreditar que está morto.
Uma forma mínima da síndrome de Cotard, bem mais freqüente na prática clínica, é o transtorno conhecido por desrealização ou despersonalização. Tais sensações, na maioria das vezes fugazes, costumam aparecer durante episódios de ansiedade aguda e intensa, ataques de pânico e depressão. Nessas situações, subitamente, o mundo parece completamente irreal, semelhante a um sonho. Nas palavras de Ramachandran, “o paciente se sente como um zumbi”. Pessoas com foco epilético no lobo temporal podem apresentar sensações semelhantes - – são os chamados “estados de sonho”.
A mente – por mais complexa e poderosa que seja – é apenas um produto do cérebro. Essa é uma afirmativa que permeia todo o conhecimento científico contemporâneo e foi expressa pela primeira vez por Charles Darwin (1809-1882), em meados do século XIX. Se não pudemos ainda desvendar a assombrosa complexidade dos neurônios, o que dizer dos processos que levam a falhas de comunicação entre eles? Ainda não sabemos com precisão tudo o que resulta dessas incorreções, mas nada nos impede de admirar sua grandiosidade. O espanto nos domina quando ouvimos o paciente com a síndrome de Cotard falar dos seus delírios de imortalidade. Talvez porque, no fundo, tenhamos uma ponta de inveja dissimulada. Quantos de nós, ainda hoje, como Fausto, o personagem criado pelo escritor Johann Wolfgang von Goethe, não selaríamos de bom grado um pacto com o diabo, em troca da vida eterna?
PARA CONHECER MAIS
O homem que fazia chover e outras histórias inventadas pela mente. Edson Amâncio. Editora Barcarolla, 2006.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/o_pacto_com_o__diabo_e_a_vida_eterna.html
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