Um acidente, que transformou a memória de um americano comum em um grande vazio, deu origem a conhecimentos científicos fundamentais nos últimos 50 anos.
A história de um dos mais célebres pacientes das neurociências é marcada por uma grande ironia. Uma tragédia particular, que transformou a memória de um homem saudável em um campo vazio, acabou dando origem a conhecimentos engendrados pela ciência nos últimos 50 anos. As informações explicam boa parte do que se sabe atualmente sobre como o cérebro destila o fluxo do tempo para converter presente em passado. O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto escreveu que “é preciso cultivar o deserto como um pomar às avessas”. Foi o que aconteceu com o americano Henry Gustav Molaison, mais conhecido como H.M. – o adágio poético que se concretizou em realidade científica.
Em 1933, o caminho do pequeno Henry, então com 7 anos, foi atravessado violentamente por uma bicicleta, em Hartford, capital do estado americano de Connecticut. Depois da queda e da forte batida da cabeça que o deixou inconsciente por cerca de cinco minutos, o menino pareceu recuperado e seguiu a vida normalmente. Convulsões leves começaram a aparecer três anos depois, mas ninguém as associou ao acidente, já que três de seus primos paternos de primeiro grau sofriam de epilepsia. A primeira convulsão intensa ocorreu no dia em que o rapaz completava 16 anos. Daí para frente as crises só pioraram em gravidade e frequência. Aos 27 anos, eram cerca de dez por semana, obrigando-o a deixar o emprego numa fábrica de automóveis. Medicamento algum surtia efeito, mesmo em altas doses.
CAMINHO SEM VOLTA
Se a cirurgia a que foi submetido em 1953 de fato acabou com o tormento das convulsões, em compensação, aniquilou a capacidade de H.M. de gravar novas memórias, o que foi transformando as remanescentes, ao longo das décadas seguintes, num conjunto cada vez menor de lembranças remotas e desbotadas. “Agora mesmo, eu me pergunto, será que disse ou fiz alguma coisa errada? Veja você, nesse momento tudo parece claro para mim, mas e o que acabou de acontecer? Isso me preocupa. É como acordar de um sonho. Eu simplesmente não lembro”, disse Molaison certa vez.
William Scoville, então diretor do Departamento de Neurocirurgia do Hospital de Hartford, aceitou o desafio de operar H.M., e em 1o de setembro de 1953 fez a ressecção bilateral do lobo medial temporal, um procedimento experimental em grande parte com base nos trabalhos do americano Wilder Penfield, pioneiro em neurocirurgia e que na época fazia uma brilhante carreira na Universidade McGill, em Montreal, no Canadá. Eram as psicoses, e não a epilepsia, a especialidade de Scoville; mesmo assim não havia nas redondezas neurocirurgião mais habilitado que ele para o caso único e gravíssimo, que justificava medidas radicais.
A extensão exata da ressecção operada no cérebro de Molaison só foi conhecida em 1997, quando uma ressonância magnética (durante muitos anos postergada por não haver certeza de que os grampos aplicados nas meninges não trariam riscos ao paciente caso se deslocassem dentro do equipamento) revelou que ela era menor do que a descrita por Scoville, em 1953. Ainda assim, a lesão não foi pequena, estendendo-se por 5 cm desde a extremidade anterior do lobo temporal, cobrindo dois terços do hipocampo, além do giro para-hipocampal, úncus e amígdala. Naquela época ninguém podia prever consequências tão adversas. A memória era concebida como uma função cognitiva amplamente distribuída pelo córtex cerebral, inseparável das funções sensoriais e intelectuais. Ao saber que Penfield apresentara dois casos semelhantes aos de H.M. (porém com lesões unilaterais do lobo temporal medial) na reunião da Associação Americana de Neurologia daquele mesmo ano, Scoville não teve dúvidas e pediu auxílio ao colega do Canadá.
Indicada por Penfi eld para realizar testes em H.M., a psicóloga britânica Brenda Milner, então com 37 anos, atravessou de trem os 420 quilômetros que separam Montreal de Hartford, trajeto que faria incontáveis vezes nos 30 anos seguintes. Formada em Cambridge, Reino Unido, ela trabalhava com o mestre no Instituto Neurológico de Montreal desde 1950 e havia concluído seu doutorado, em 1952, com Donald Hebb, outro gigante das neurociências, pioneiro da neuropsicologia. De volta à Universidade McGill, Milner descreveu H.M. como alguém que “esquece eventos diários tão rápido como eles ocorrem, aparentemente na ausência de qualquer perda intelectual geral ou distúrbio perceptivo. Ele subestima sua idade, pede desculpas por esquecer o nome das pessoas. É como se tivesse acordado de um sonho. Cada dia é único em si mesmo”.
Suas observações, bem como os resultados dos primeiros testes neuropsicológicos, foram publicadas em 1957 num artigo antológico, em co-autoria com Scoville, que é um dos mais citados das neurociências (cerca de 2.500 citações). Houve, no entanto, resistência entre os colegas cientistas, que logo evoluiu para ceticismo quando lesões semelhantes feitas em macacos não surtiram a mesma resposta. Os animais conseguiam aprender tarefas para as quais H.M. se mostrava incapaz. Só anos depois se descobriu que, em primatas não humanos, certas tarefas de discriminação visual como as que foram usadas dependem de circuitos neurais localizados não no lobo temporal, mas em outra região conhecida como gânglios da base.
Com o passar dos anos, diferentes testes neuropsicológicos, muitos deles engenhosamente elaborados por Brenda, foram permitindo destrinchar a memória em suas diversas facetas, graças ao fato de as funções intelectuais e sensoriais de Molaison estarem intactas. Ele conseguia, por exemplo, memorizar uma sequência de três números por até 15 minutos, por meio de um treino que organizava os dígitos segundo um esquema mnemônico. No entanto, quando sua atenção era desviada para outro foco, a informação era imediatamente perdida. Resultados como esses foram fundamentais para consolidar a distinção entre memória de curto e longo prazo, que já havia sido imaginada por William James no fim do século XIX, mas até então não havia sido claramente demonstrada. Entretanto, a descoberta mais surpreendente proporcionada por H.M. está relacionada à distinção entre o que hoje chamamos de memória explícita e implícita, também conhecida como declarativa e procedural, respectivamente. O “momento eureka” veio depois que Brenda pediu ao paciente para copiar o desenho de uma estrela, numa condição em que ele só podia ver a figura e a própria mão por meio de espelhos. Depois de dez sessões de treinamento, seu desempenho melhorou nitidamente e se manteve ao longo de três dias, ainda que para ele a tarefa fosse sempre inédita. Essa foi a primeira demonstração de que há um tipo de memória, particularmente associada a tarefas motoras (como dirigir um carro ou uma bicicleta), que não depende de processamento consciente e reside em alguma outra região cerebral que não o lobo temporal medial.
RESTOS DO PASSADO
As lembranças preservadas de H.M. também forneceram pistas importantes sobre localização cerebral. Sua amnésia anterógrada era parcial, cobrindo apenas os três anos anteriores à cirurgia (realizada quando ele tinha 27 anos). Assim, sua capacidade de reconhecer a face de pessoas que ficaram famosas até o fim dos anos 40 era tão boa ou melhor que a de voluntários saudáveis e não se modificou ao longo do tempo. A evidência sugeria que o lobo temporal medial não era o destino final do conhecimento previamente adquirido, o que se comprovou posteriormente. Mas a resposta foi diferente no caso das memórias autobiográficas, definidas como eventos únicos no tempo e no espaço. Em Molaison, a evocação deste tipo de lembrança foi mudando com o avançar da idade, tornando-se menos vívida e mais abstrata. Daí surgiu a hipótese, mais tarde confirmada, de que memórias associadas a coordenadas específicas no tempo e no espaço dependem do sistema temporal medial para persistir.
Os primeiros relatos sugerindo envolvimento do lobo temporal medial na memória datam do fim do século XIX, mas o assunto ficou esquecido por décadas, sendo retomado apenas nos anos 50 por Penfield. Antes de H.M. ele já sugeria, com base na observação de outros pacientes amnésicos, que o hipocampo teria uma participação fundamental na formação de lembranças. Mas, por essa época, havia também outras hipóteses para a função da estrutura cuja anatomia lembra um cavalo-marinho (em grego, hippos kampos). A principal era a de que ela estava associada ao olfato, porque aí desembocavam fibras vindas diretamente do bulbo olfatório, o que mais tarde se revelou um equívoco neuroanatômico.
A lesão de H.M. não se restringia ao hipocampo, mas o fato de ser bilateral, diferentemente da maioria dos pacientes estudados antes e depois dele, o tornou um excelente modelo experimental e detonou uma avalanche de pesquisas com modelos animais. Embora não trabalhe sozinho, o hipocampo hoje é considerado a estrutura chave dos mecanismos que, ao fim e ao cabo, definem nossa identidade. Espécie de “gravador” que converte memórias de curto prazo em memórias de longo prazo, suas facetas moleculares são cada vez mais conhecidas, a ponto de já começar a ser possível “apagar” lembranças em animais de experimentação. Como disse o neurocientista Eric Kandel, Prêmio Nobel de Medicina em 2000, ao jornal The New York Times, o caso de H.M. e o trabalho de Brenda “permanecem como um dos maiores marcos da história da neurociência moderna, proporcionando a base do conhecimento para tudo o que veio depois: o estudo da memória humana e seus distúrbios”.
PARA NÃO ESQUECER
Nada disso teria sido possível se Molaison não fosse um homem doce, bem-humorado e estivesse sempre disposto a participar dos testes – durante 50 anos ele se apresentou a Brenda e a outros colaboradores como se fosse o primeiríssimo encontro. “O que ele aprendeu sobre mim ajudou outras pessoas e eu fico contente com isso”, disse uma vez, perguntado sobre o que pensava sobre o cirurgião que o operou em Hartford.
Henry Gustav Molaison morreu em 2 de dezembro de 2008, aos 82 anos, numa instituição geriátrica onde passou os últimos anos de vida, comprometidos pela artrite. Sua história, da qual ele próprio nunca teve noção, está sendo escrita pela pesquisadora Suzanne Corkin, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachussetts), que foi aluna de Brenda Milner (hoje com 91 anos) e assumiu os estudos sobre H.M. nos anos 90. Depois da morte, o cérebro dele foi escaneado por ressonância magnética e preservado para novas pesquisas. É bem provável que gere mais conhecimentos que o de Albert Einstein, o último que despertou tanto interesse, mas acabou frustrando as expectativas de quem esperava ver revelada a anatomia da genialidade.
Talvez em poucos anos possamos encontrar H.M. na tela do cinema, pois os direitos autorais do futuro livro de Corkin já foram comprados pela Columbia Pictures. Quando isso acontecer, sua história e seu legado, já reconhecidos no meio científico, poderão ficar eternizados também na memória do grande público.
1926 – NASCE EM 26 DE FEVEREIRO EM HARTFORD, CONNECTICUT.
1933 – É ATROPELADO POR UMA BICICLETA. NA QUEDA, BATE FORTEMENTE A CABEÇA CONTRA O CHÃO, MAS SE RECUPERA SEM APARENTES CONSEQUÊNCIAS.
1936 – SURGEM AS PRIMEIRAS CONVULSÕES LEVES, QUE SE INTENSIFICAM EM GRAVIDADE E FREQUÊNCIA NOS ANOS SEGUINTES.
1953 – SOFRENDO DE CONVULSÕES VIOLENTAS E DIÁRIAS, É OPERADO PELO NEUROCIRURGIÃO WILLIAM SCOVILLE, EM HARTFORD. NO MESMO ANO, BRENDA MILNER DÁ INÍCIO AO ESTUDO QUE REVOLUCIONOU AS PESQUISAS SOBRE MEMÓRIA.
1997 – É REALIZADA A PRIMEIRA RESSONÂNCIA MAGNÉTICA DO SEU CÉREBRO, QUE MOSTRA A REAL EXTENSÃO DA LESÃO CAUSADA PELA CIRURGIA, MENOR QUE A DESCRITA ORIGINALMENTE.
2008 – MORRE EM 2 DE DEZEMBRO EM HARTFORD, AOS 82 ANOS.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/henry_gustav_molaison_-_o_homem_sem_lembrancas.html
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