domingo, 1 de julho de 2012

Emoção à flor da pele.

Algumas músicas nos afetam a ponto de provocar arrepios. O que faz com que essas obras tenham efeito sobre o sistema nervoso autônomo e desencadeiem excitação sensorial?.


Sexta-feira da Paixão, concerto com coral no mosteiro de Freiburger, Alemanha. No programa, a Paixão segundo São Mateus, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Em um momento pungente, logo após o interrogatório do sumo sacerdote, Pilatos conduz Jesus para diante da multidão e pergunta: “Quem quereis vós que eu liberte? A Barrabás ou a Jesus, de quem se diz ser o Cristo?”. “Barrabás!” – o brado da multidão faz o coração bater mais forte e as pernas fraquejarem. Nesse momento Bach emprega um acorde inesperadamente dissonante, de coro e orquestra – o equivalente musical de um soco na cara. Os ouvintes, mesmo os que conhecem a obra, sentem um “frio na espinha”.

Pesquisas revelam que fazer e ouvir música estão entre as principais opções de lazer. De onde vem esse prazer é objeto até agora pouco estudado, mas alguns psicólogos supõem que o estímulo peculiar de melodias e harmonias reside, sobretudo, em uma capacidade de desencadear emoções intensas – um sentimento à flor da pele, como no caso da Paixão segundo São Mateus.

Mas do que exatamente falamos ao nos referir a emoções? Pesquisadores do comportamento as tomam por estímulos aos quais reagimos. No caso da Paixão, resposta a um sinal acústico, reação de involuntário arrepio dos pêlos do corpo – um reflexo desencadeado pelo sistema nervoso autônomo, que se manifesta como que à flor da pele. A avaliação do estímulo poderia ser um susto provocado por uma intensidade sonora repentina, mas também por uma atitude de compadecimento, ao se pensar que um inocente será condenado à morte.

É claro que tudo depende do contexto: ante uma interpretação fraca ou entediante da mesma obra, um ouvinte sonolento – ou até frustrado – dificilmente poderá sentir aquela forma de emoção; o máximo que lhe acorrerá será um inquieto cruzar e descruzar de pernas. Em contrapartida, um ouvinte experiente, que conhece a obra, já fica na expectativa do momento em que a música lhe causará arrepios. E apenas imaginar tal passagem pode despertar as sensações. A psicologia comportamental chama essa possibilidade de “esquema de estímulo-resposta condicionados”. Esse fenômeno pode ajudar a compreender vivências subjetivas que se manifestam por meio da audição musical. A experiência­ intensa, que desencadeia reações do sistema nervoso autônomo, foi apreendida pelo conceito que, em inglês, se convencionou chamar chill.

Se a fêmea e o filhote estão próximos mas perdem o contato visual, o grito da mãe faz com que sua pelagem fique eriçada, aquecendo o bebê



SINALIZADOR EVOLUTIVO

Nos últimos anos, no Instituto de Fisiologia da Música e Medicina da Música de Hannover, estivemos pesquisando quais peças musicais provocam chills em que indivíduos e as condições em que essa reação se dá. O ponto de partida foi um projeto do pesquisador Jaak Panksepp, da Universidade Estadual Bowling Green, dos Estados Unidos. Segundo ele, tais estremecimentos remeteriam a um sistema sinalizador biológico primitivo, inerente à evolução de alguns primatas: se mãe e filho estão próximos, mas perdem o contato visual por causa da escuridão, por exemplo, o grito da mãe provoca uma reação característica. A pelagem se põe de pé, o que por sua vez mantém aquecida a pele do bebê. Transpondo o fenômeno para os seres humanos, determinados padrões acústicos desencadeiam tais reações – independentemente do contexto cultural. Em outras palavras: buscamos aquela “música chill” de caráter universal.

Desde os anos 50 os psicólogos reconhecem sobressaltos musicais que intercalam estados de tensão e relaxamento como componentes essenciais da vivência emocional dos ouvintes. Mas para rastrear o que se poderia ter como “qualidades chill” fundamentais das composições seria preciso acompanhar as reações no curso do tempo.

Indivíduos submetidos ao experimento durante a audição registraram o seu estado emocional de maneira contínua: diante da tela de um computador e fazendo uso de um sistema de dados coordenados, eles indicavam de que modo a música era sentida a cada instante e se a passagem imprimia sensações de calma ou estímulo. As incidências do chill deveriam ser sinalizadas com um clique no mouse. Diversos indicadores fisiológicos foram identificados: o nível de condutância da pele da mão, a atividade dos músculos da face – importantes para a expressão da mímica dos sentimentos, a freqüência respiratória, a temperatura e a pulsação.

Em palestra aberta ao público, escolhemos 38 pessoas entre 11 e 72 anos, de diferentes classes sociais, com variado gosto musical. A relação de gênero era de 29 mulheres para nove homens. Entre eles, 25 tocavam ou já haviam tocado algum instrumento e 13 eram músicos amadores.

Manuscrito da partitura de paixão segundo São Mateus, de Johann Sebastian Bach: vivências subjetivas se manifestam por meio da audição e atingem o sistema nervoso


Os indivíduos em teste ouviram sete obras previamente selecionadas, além das músicas que haviam trazido – justamente as que lhes provocavam reações emocionais. Acompanharam a reprodução de 415 trechos musicais e vários deles foram repetidos por até sete vezes. Os chills ocorreram em 136 ocasiões – cerca de um terço dos casos. Reações emocionais intensas foram mais freqüentes com as músicas que eles próprios haviam trazido. No decorrer do experimento, a “tecla-chill” foi pressionada 686 vezes; logo, as obras que mais emocionavam geralmente provocavam arrepios em diferentes momentos.

Em sete dos 38 indivíduos selecionados para a apresentação, não foi notada nenhuma reação específica durante o experimento. Nem sempre emoções e reações corporais andam de mãos dadas: em 20% dos casos a experiência não se enquadra nos parâmetros psicofisiológicos e, durante suas ocorrências, igualmente sobrevém um aumento dos níveis de condutância da pele ou da freqüência cardíaca, sem que o indivíduo pressione a tecla chill.

CENTROS VEGETATIVOS

Para a maioria dos voluntários, entretanto, as emoções e a fisiologia revelaram uma estreita conexão: os batimentos cardíacos aumentaram, em média, quatro segundos antes do chill e cerca de dois segundos tão logo foi acusada alteração na condutância da pele. Essa diferença corresponde aproximadamente ao tempo necessário para a inervação do sistema nervoso autônomo enviar sinais para os centros vegetativos do tronco cerebral, tomando como ponto de partida as glândulas sudoríferas e os vasos sangüíneos da mão. Reações emocionais importantes se avolumavam quando a intensidade sonora chegava a uma faixa mais alta de freqüência entre 1.000 Hz e 3.000 Hz – a mais perceptível aos ouvidos humanos. Acontecimentos musicais bem específicos, entretanto, também podem produzir a reação à flor da pele: o início de uma nova seção da composição ouvida, a primeira nota de um solo, a entrada de um coro.

Evidencia-se que reagimos de modo especialmente sensível ao novo – e à voz humana. Por isso o clamor por Barrabás na Paixão segundo São Mateus produz um efeito tão contundente. Em ouvintes com mais conhecimentos sobre música acontece ainda outra coisa: no reconhecimento de estruturas – motivos ou tonalidades retomados no decorrer de uma peça musical – experimentam fortes emoções, por exemplo, na passagem, usada em nosso estudo, da Toccata para órgão BWV 540 de Johann Sebastian Bach.

Também nos questionávamos se, de fato, existe uma personalidade auditiva típica. Na pesquisa realizada, solicitamos às pessoas que respondessem a um questionário com perguntas-padrão relativas à personalidade. Em duas outras séries, perguntamos, sempre em relação a cada uma das músicas, se já conheciam, como tinham se sentido e quais foram as lembranças e reações físicas. Ao final da pesquisa fizemos perguntas pessoais sobre conhecimento musical e acontecimentos de ordem emocional recentes.

SISTEMA DE GRATIFICAÇÃO

Uma constatação importante foi a tendência a chills naqueles que revelaram limiares de estimulação de caráter reduzido na vida emocional, e por isso, de modo geral, demonstravam leve comoção. Além do mais, manifestaram timidez ou dependência de gratificações; identificaram-se especialmente com as músicas que haviam escolhido, por serem dotadas de algum significado especial para eles. Em resumo: as características de personalidade influenciam de maneira notável no modo como se reage ao ouvir uma música.

Os resultados obtidos fazem atentar para a quase inexistência do que se poderia ter como “música chill” em âmbito universal. Assim, uma emoção não pode ser desencadeada por um único esquema estímulo-resposta. Por outro lado, algumas regras gerais para o prazer à audição musical se deixam cristalizar: devem coincidir características da música – como a voz humana ou uma “novidade” – e a personalidade do ouvinte com suas experiências musicais. No entanto, o caminho das “notas até o arrepio” também pode se dar de maneira retilínea e quase maciça, como no súbito aumento da intensidade sonora, por ocasião do clamor por Barrabás.

Nesse caso, tudo se reduz a uma suposta reação semelhante à do medo, que seria desencadeada por algo como um tiro de pistola. O efeito “bang” é encontrado em muitas outras composições, como nas sinfonias de Gustav Mahler ou no bailado A sagração da primavera, de Igor Stravinsky – provocando emoções fortes na maioria das pessoas. As reações musicais do chill talvez não resultem, portanto, apenas dos gritos de separação dos primatas.

Pode-se presumir que o significado do chill transcende em muito o âmbito da comunicação social: segundo estudos da neuropsicóloga canadense Anne Blood e de Robert Zatorre, da Universidade McGill em Montreal, feitos em 2001, esse tipo de vivência depende muito mais da ativação do sistema de gratificação cerebral do que da mediação da sensação de felicidade que se pode ter, por exemplo, com o sexo ou com algum alimento apetitoso.

Evidencia-se que a liberação condicionada de endorfina – o opióide do próprio corpo – estimula também a memória. O cérebro indica, sempre que possível, os momentos de origem das alterações acústicas importantes no meio`, as quais produzem uma emoção à flor da pele e ao mesmo tempo ficam gravadas na memória –, por exemplo, o ruído característico de um predador se aproximando. Foi nesse cenário que mais tarde o ser humano começou a transformar os estímulos chill em música.

Ainda hoje, quando deparamos com algo novo, o nosso sistema de gratificação está aberto para alguma regulamentação ou para ser surpreendido. Todos esses processos mentais pressupõem um mínimo de experiência. Isso serve para as relações com a música, validando a divisa: quanto mais eu compreendo, melhor consigo sentir a mim mesmo. Bom argumento para o ensino de música nas escolas.


MÚSICA PARA QUÊ?

Em seu sentido mais amplo a música pode ser descrita como um padrão sonoro que se desenvolve e se estrutura no tempo. Vem daí a sua função comunicativa. Além disso, ela tem sua importância no processo de busca por um parceiro sexual. Aqui se manifestam características um tanto ocultas, como no caso em que um jovem canta a plenos pulmões e com isso dá informações sobre sua saúde: há cem anos, a informação de que ele não portava tuberculose era muito importante, pois o alçava à condição de bom partido para um possível casamento. O forte efeito emocional das vozes masculinas potentes poderia ser uma demonstração de boa forma.

Mesmo um sinal acústico direto, no entanto, pode originar efeitos bastante intensos. Sabe-se hoje que o fazer e ouvir música com muita freqüência libera endorfina, o que desencadeia sentimentos de felicidade, que por sua vez fortalecem os laços de união entre os ouvintes. Outro papel importante é o que a música desempenha quando convida à dança, que em muitas sociedades está atrelada a festas religiosas e ritos sociais. A dança é um elemento de incentivo às relações sociais e, ao que tudo indica, ajuda na liberação pela hipófise do hormônio oxitocina, que ajuda a consolidar as memórias da vivência em grupo. A identidade coletiva também é fomentada quando são entoados hinos nacionais, de times de futebol ou cânticos populares de minorias étnicas. No exercício militar, ou para exaltar sentimentos de uma comunidade, é freqüente o uso da música na sincronização de procedimentos.


CHILLS PARA INICIANTES

Além da lista abaixo, o leitor pode conferir pelos links as biografias dos autores.

Richard Strauss
Also sprach Zarathustra
Sinfonia alpina

Maurice Ravel
Bolero

Gustav Mahler
Sinfonia no 2, “Ressurreição”
1o e 5o movimentos

Ludwig van Beethoven
Sinfonia no 9,
1o, 2o e 4o movimentos

Joseph Haydn
A Criação, introdução de (“Caos”):

Igor Strawinsky:
A sagração da primavera


PARA CONHECER MAIS
Intensely pleasurable responses to music correlate with activity in brain regions implicated in reward and emotion. A. Blood e R. Zatorre, em Proceedings of the National Academy of Science 98, págs. 118818-11823, 2001.

The emotional sources of “chills” induced by music. J. Panksepp, em Music Perception 13, págs. 171-207, 1995.

Emotional sounds and the brain: the neuro-affective foundations of musical appreciation. J. Panksepp e G. Bernatzki, em Behavioural Processes 60, págs. 133-155, 2002.

Caso o leitor queira ouvir a música A Paixão segundo São Mateus pode conferir clicando no link.

Fontes: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/emocao_a_flor_da_pele.html
http://oserdamusica.blogspot.com.br/2010/06/johann-sebastian-bach-1685-1750-paixao.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dgor_Stravinski
pt.wikipedia.org/wiki/Richard_Strauss
wikipedia.org/wiki/Maurice_Ravel
wikipedia.org/wiki/Gustav_Mahler
wikipedia.org/wiki/Ludwig_van_Beethoven
wikipedia.org/wiki/Joseph_Haydn

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