Ao longo dos séculos, sintomas mutáveis da patologia descrita por Freud, há mais de 100 anos, são interpretados sob influências históricas, sociais, culturais - e ainda hoje intrigam profissionais da saúde.
Terror da Inquisição: versão de 1860 de xilogravura de 1232 faz alusão aos julgamentos e às condenações à fogueira.
França, 1599. A jovem camponesa Martha Brossier é presa e julgada sob acusação de feitiçaria. Para o clero, os sinais de envolvimento com o demônio são inegáveis: seu corpo sacode-se em convulsões, ela contorce os músculos, contrai a face, se expressa com tom de voz alterado e se mostra insensível a picadas de longas agulhas. Segundo relatórios sobre o caso, mantidos na Biblioteca Nacional, em Paris, médicos chegam a levar em conta evidências de epilepsia ou histeria - mas por fim a hipótese é descartada. Martha é considerada culpada e, como tal, morta pela Inquisição. Talvez, se fosse examinada três séculos mais tarde, pelo médico Jean-Martin Charcot, no hospital francês La Salpêtrière, teria seus sintomas exibidos numa aula assistida por médicos recém-formados entre eles Sigmund Freud.
É consenso que a prática freudiana começou com pacientes histéricas. Muito antes, porém, os sintomas tão desafiadores, variáveis, enigmáticos e mutáveis da patologia capaz de alterar funções motoras e sensoriais, sem nenhuma justificativa corporal para sua origem, já intrigavam leigos e especialistas. Em alguns momentos históricos, essas manifestações foram relacionadas à bruxaria e à possessão demoníaca.
Na Idade Média, quando a Igreja estendia seus domínios para além da fé e exercia grande poder político e econômico, questões culturais e sociais mostravam-se intimamente relacionadas aos quadros histéricos. Com a queda do Império Romano, a Europa fragmentou-se em feudos e a Igreja era a única referência comum, o que tornava seus poderes cada vez mais amplos. Qualquer questionamento a suas crenças e dogmas era visto como grande ameaça.
Invasões bárbaras, freqüentes na época, eram fonte de insegurança, tanto pela violência, quanto pelas crenças pagãs que propagavam. Povos como os celtas e os druidas, incorporados pelos romanos, retomavam antigos hábitos, e todos os ritos pagãos invariavelmente eram considerados magia ou bruxaria. Tais crenças eram consideradas pelos dominantes formas ardilosas de o demônio conquistar espaços; o que diferia das práticas cristãs era tido como possessão e feitiçaria. Tal postura solidificou o poder da Igreja, promoveu a institucionalização do terror e do medo. O diabo e as bruxas faziam parte da vida ordinária da sociedade medievalista.
O Renascimento trouxe novas perspectivas, já que muitas das idéias, antes proibidas, passaram a fazer parte das discussões acadêmicas, filosóficas e teológicas. Antes que isso se tornasse realidade, porém, muita coisa se passou. Ao perceber que seu domínio não era tão inquestionável quanto antes, a Igreja reagiu violentamente.
É dessa época o ápice da Inquisição e dos autos-de-fé e é aqui que nos aproximamos da histeria. Muitos dos casos que hoje compreendemos como histeria eram tidos, na ocasião, como manifestações de bruxaria. Em 1599, Pierre L'Estoile escreveu em seu diário sobre o julgamento de Martha Brossier: "As agitações que observamos não têm nada da natureza das doenças; (...) não sendo nem epilepsia, a qual supõe a perda de todo o sentimento e julgamento; nem a afecção que nós chamamos de histeria, a qual não ocorre jamais sem privação, ou dificuldade de respiração. (...)
Somos compelidos até esse momento por todas as leis do discurso e da ciência, e quase forçados a acreditar ser essa jovem demoníaca, é o Diabo habitante nela o autor de todos estes efeitos".
De fato, as características apresentadas por Martha não diferem muito das descritas por Freud mais de 300 anos depois: estão presentes as alterações de percepção, de sensação e motoras, a multiplicidade de personalidades e grande plasticidade de sintomas.
O interesse de Freud pela histeria revela um enigma até então incompreensível para a ciência. Muitas vezes, os casos eram tomados como artimanhas e encenações que desestabilizavam o conhecimento médico. Tal como fazia o homem religioso do século XVI diante das bruxas, os médicos - sentindo-se desafiados - tratavam das pacientes de forma punitiva.
No início de sua carreira, sob forte influência de Charcot, Freud utilizava a hipnose na tentativa de tratar a patologia. Utilizava a técnica para buscar lembranças traumáticas relacionadas a cada um dos sintomas e, em 1895, publicou com Breuer Estudos sobre histeria. É nesse trabalho que pela primeira vez o autor utiliza o termo "trauma". Segundo sua primeira teoria sobre o tema, a paciente deveria lembrar-se do evento doloroso e vivenciar as emoções que não havia podido expressar de forma adequada na ocasião.
Encontram-se na obra recortes clínicos do atendimento de cinco mulheres, casos importantes para a história da psicanálise: Anna O., Emmy von N., Lucy, Katharina e Elisabeth von R. Todas com algo em comum: sintomas clássicos de histeria de conversão (na qual conflitos psíquicos são convertidos em manifestações somáticas motoras ou sensitivas, dolorosas ou limitantes). Talvez, se tivessem vivido séculos antes, fossem consideradas bruxas, assim como Martha Brossier.
Freud afastou-se de Breuer ao perceber que suas pacientes relacionavam os eventos traumáticos a experiências sexuais. Intrigado, deteve-se na investigação da vida sexual das histéricas e construiu sua teoria da sedução, abandonada pouco depois. Ele sugeria que os sintomas tinham origem em uma experiência sexual precoce e violenta, na maior parte das vezes praticada pelo próprio genitor contra a criança.
Apesar das convicções de Freud, porém, os resultados dos tratamentos não eram promissores. Muitas pacientes o abandonavam e outras não apresentavam sinais de melhora. Tal situação o deixou muito preocupado com seu futuro profissional e pessoal. Em crise, Freud abandonou os estudos com as histéricas e voltou aos laboratórios de neuroanatomia.
Com a morte de seu pai, iniciou sua auto-análise e percebeu que seus sofrimentos tinham a mesma natureza das que ouvia de seus pacientes. O resultado mais conhecido desse processo analítico é a obra fundamental de Freud, A interpretação dos sonhos (1900), onde estão lançadas as bases da psicanálise: a divisão do aparelho psíquico, a noção de recalque e a proposição do funcionamento dinâmico do Inconsciente. O autor afirma que os sonhos têm sentidos que podem ser apreendidos por meio de um método, eficiente também para a compreensão dos sintomas histéricos. Essas proposições acarretam uma forma até então inédita de compreender o ser humano. Está fundada a psicanálise.
Satisfeito com os resultados, publica em 1905 Fragmentos da análise de um caso de histeria, mais conhecido como o Caso Dora, um relato clínico em que as relações entre sonhos e sintomas histéricos são evidentes. Trata-se, também de uma histeria de conversão.
Todos os casos de histeria descritos por Freud são conversivos e isso não deve passar despercebido. Talvez por conta disso, alguns entendam que todo fenômeno histérico é conversivo. Embora a conexão exista, Freud o autor foi bem além, afirmando que a principal característica da patologia é um tipo peculiar de transferência, na qual se busca a repetição de modelos de relacionamentos vividos com figuras parentais na infância, que implica uma relação de sedução e uma desesperada tentativa, por parte do paciente, de preencher um vazio existencial.
Ainda hoje, entre profissionais da saúde, persiste a expectativa de que a doença se apresente por meio de sintomas bizarros e chamativos. O principal interesse pelo transtorno parece vinculado à conversão. Talvez, um detalhe de importância fundamental seja por vezes ignorado: a histeria é uma patologia de ordem psicológica. Quando pacientes manifestam seus sintomas no corpo de maneira inequívoca, nos referirmos ao caso como "uma histeria de livro" - talvez um hábito que remonte à época de caça às bruxas, em que o desconforto provocado pelo enigma se misturava ao fascínio do espetáculo.
Tais casos, porém, já não são tão freqüentes. É razoável lembrar que a histeria assume formas variadas e não se pode deixar de levar em conta características importantes do quadro como plasticidade, variabilidade e imprevisibilidade dos sintomas. Ao longo de mais de 120 anos, o conceito comportou uma variedade de terminologias - como histeria de angústia, de retenção, de defesa, hipnóide e traumática. Uma a uma, porém, tais denominações (e conceitos) foram abandonadas ou modificadas, de acordo com o desenvolvimento do pensamento freudiano, o que revela a impossibilidade de definir todas as facetas e características da histeria.
Que o digam os organizadores do Manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais (DSM), que a cada nova edição acrescentam novos nomes e verbetes para descrever uma estrutura psíquica dinâmica tão complexa quanto a histeria. O caráter relacional e o desenvolvimento da transferência no paciente histérico são de grande importância para compreender nuances da histeria. É indispensável ressaltar que a histeria é uma forma específica de se relacionar com o outro, e o sintoma explicitado no corpo, portanto, deve ser considerado apenas como instrumento a mais para o estabelecimento de vínculos.
Nesse quadro, o desejo pela figura parental do sexo oposto, vivido no complexo de Édipo, manifesta-se de forma intensa e, com semelhante ênfase, é recalcado. O conflito psíquico conseqüente se manifesta em todas as esferas da vida sexual e anímica do sujeito. A queixa histérica reflete a falta do objeto amado e desejado. Na tentativa de conquistar o que lhe falta, o paciente histérico utiliza sedução, seja em atos (falhos ou não), seja na forma de estabelecer vínculos e na maneira de mantê-los.
Não obstante, a sedução não pode se efetivar em uma relação consolidada e amadurecida, uma vez que isso colocaria em risco o frágil equilíbrio do aparelho psíquico, por se aproximar demais da fantasia incestuosa. Portanto, falamos de uma forma de seduzir que tende ao fracasso, que é em última instância a principal fonte de sofrimento histérico.
Por conta do recalque, há a busca de um objeto alternativo de satisfação, como forma de evitar a fantasia edípica. A sedução, antes dirigida às figuras parentais, é reeditada na procura por outras pessoas que possam ocupar tal espaço. Por conta de deslocamentos e condensações, as figuras escolhidas guardam íntima relação com os objetos abandonados (os pais da infância) por terem traços similares a eles, pelo menos no modo de ver do sujeito, ou por serem diametralmente opostos. Os objetos atuais de interesse negam ou afirmam os primeiros modelos. Também essas escolhas estão fadadas ao fracasso, já que persistem as fantasias relacionadas ao objeto escolhido e ao que foi abandonado no passado. Na verdade, na histeria o objeto edípico nunca é abandonado - por isto Freud dizia que as histéricas sofriam de reminiscências.
Uma das queixas habituais dos histéricos refere-se à sensação de abandono, já que seus relacionamentos amorosos não se efetivam justamente em conseqüência da erotização idealizada em relação às pessoas que se encontram ao seu lado. Usando a sedução, o paciente constantemente busca situações que não podem ser realizadas, por exemplo investindo na aproximação de pessoas com algum tipo de restrição profissional ou emocional.
A insatisfação sexual é freqüente na experiência histérica, pois a intimidade com um parceiro é extremamente ameaçadora tanto às fantasias edípicas quanto aos preceitos morais e éticos do paciente. A organização psíquica da histérica faz com que, diante de desejos intensos, repressões igualmente fortes, fantasias e idealizações extremamente elaboradas, somadas à sensação de constante falta e insatisfação sexual, surja a tendência a dramatizar os mais variados eventos da própria vida, de acordo com as fantasias do paciente. Tal teatralização também era vista nos grandes julgamentos de feitiçaria. O macabro, o bizarro e o espetacular sempre chamaram a atenção. E, nesse sentido, nada mais sedutor que a bruxaria.
A dramatização cotidiana, porém, torna difícil e desgastante o convívio com o outro. A intensidade emocional e as manifestações inventivas da histérica dificultam as relações interpessoais. Tal não ocorre somente nas relações amorosas; ao contrário, todos os relacionamentos são erotizados e investidos de libido, principalmente com figuras de autoridade - como o analista, o professor ou o médico.
No caso do médico, as respostas que o histérico quer ouvir não são as que ele pode dar, por isso freqüentemente percebemos as dificuldades de profissionais em lidar com esse tipo de paciente. O pedido histérico é de natureza psicológica, mas em geral tanto o próprio sujeito quanto as pessoas com quem se envolve não percebem essa demanda. Por isso, é comum uma autêntica peregrinação desses pacientes por consultórios de profissionais da saúde das mais variadas formações. Guardadas as devidas proporções, situações semelhantes viviam as mulheres acusadas de bruxarias: eram avaliadas por inúmeros especialistas (religiosos, médicos, advogados etc.) até se chegar ao veredicto, que invariavelmente as declarava culpadas.
Qualquer profissional que se detenha apenas nas manifestações somáticas das queixas histéricas, dando atenção somente aos aspectos descritivos e estáticos da doença, deixará de lado sua principal característica: o caráter dinâmico e relacional da doença. O aspecto certamente não passou despercebido a Freud. Ao formular o conceito de transferência, ele descortinou um tipo peculiar de relação estabelecida entre analista e analisando. O manejo clínico da transferência tornou-se, aliás, um dos principais instrumentos técnicos da psicanálise. Ou seja, Freud foi muito além da conversão ao descrever a histeria. Por meio da leitura criteriosa de seus textos, percebe-se que, apesar das mudanças nas formas de expressão da histeria, a patologia continua a se manifestar fundamentalmente como na época do autor. Com certeza não encontramos com tanta freqüência casos de conversão, mas as características transferenciais e relacionais permanecem.
A definição do caráter histérico, portanto, não pode se basear apenas na natureza somática dos sintomas, já que variam de acordo com a cultura, a tecnologia e os costumes. Atualmente, a maleabilidade da histeria e as influências que recebe não são consideradas em toda sua amplitude. Se os sintomas de Dora variavam de acordo com as circunstâncias de sua vida, por que temos dificuldades em admitir que a manifestação dos sintomas histéricos também se modifica conforme a realidade na qual estamos inseridos?
É freqüente que as várias queixas do paciente histérico sejam investigadas por diversos especialistas, e objetivamente descartadas. Isso torna o paciente alvo das mais variadas reações; desde acusações maldosas até punições exemplares. Não é raro que tais pacientes tomem as injeções mais dolorosas e sejam tratados severamente. Os resultados de tais condutas nem sempre são os esperados, pois, de certa forma, a queixa subjetiva histérica está sendo satisfeita e, portanto, o serviço de atendimento ou o profissional serão procurados novamente.É curioso observar que tais reações por parte dos médicos são semelhantes às dos caçadores de bruxas da Idade Média e do Renascimento. A maior busca continua a ser o desmascaramento daquele que tende a enganar o outro com seus ardis, bem como garantir a devida punição. Em ambas as situações não existe a preocupação com a compreensão da dinâmica psíquica, nem com a subjetividade do paciente: o importante é encontrar o demônio e punir as feiticeiras.
Ao desmascarar o paciente histérico, o médico também se sente exposto e traído e atua contratransferencialmente, recusando qualquer cuidado além do oferecido até então. Assim, mais uma vez o paciente se vê abandonado e rejeitado em sua solidão. A solução é buscar outro profissional que dê atenção às suas queixas e sintomas. Por isso os prontuários médicos dessas pessoas tendem a ser volumosos e repletos de exames e intervenções das mais variadas.
Afinal, a estrutura histérica não sofreu mudanças drásticas desde o início da psicanálise - ou desde a época da caça às bruxas. Os avanços tecnológicos da medicina tornaram insustentável a manutenção de determinados sintomas e, por isso, notamos um decréscimo no número de casos de conversão histérica, ainda que por vezes ocorram nos hospitais gerais, principalmente em serviços de emergência e clínicas neurológicas.
A histeria, plástica e mutável, adaptou-se aos novos tempos, e suas manifestações mais evidentes deixaram de ser as conversões. Nesse sentido, é possível afirmar que a patologia caminhou mais rapidamente do que os psicólogos e profissionais da saúde em geral, uma vez que persiste a expectativa dos fenômenos conversivos.
Tal fato preocupa, pois indica que talvez ainda não tenhamos percebido que a conversão não é a principal caracterização da histeria, embora Freud o tenha escrito há mais de cem anos: a estrutura histérica se define como uma forma de se relacionar com o outro, por meio de um tipo específico de transferência. Certamente, muitas das "bruxas" foram queimadas por seus sintomas e não por seus supostos poderes mágicos. Tanto a histeria quanto a bruxaria são alegorias do fracasso do conhecimento douto na compreensão de fenômenos enigmáticos. Talvez por isso, se insista ainda hoje em caçar bruxas.
Para conhecer mais
Da histeria... para além dos sonhos. Fabio Riemenschneider. Casa do Psicólogo, 2004.
Magistrados e feiticeiros na França do século XVIII. R. Mandrou, Perspectiva, 1979.
Freud, além da alma. Filme dirigido por John Huston, com roteiro de Jean-Paul Sartre, 1962.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/histeria_e_caca_as_bruxas.html
http://www.travessa.com.br/MAGISTRADOS_E_FEITICEIROS_NA_FRANCA_DO_SECULO_XVII/artigo/94646f14-8ebf-47e0-af95-1de97d774e6b
http://books.google.com.br/books/about/Da_Histeria_Para_Alem_Dos_Sonhos.html?hl=pt-BR&id=KRTgTtbdo_oC
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