quinta-feira, 5 de abril de 2012

Saga lusa : todo mundo tem seu dia de panda.

Com bom humor, em linguagem fluente, Adriana Calcanhotto narra as agruras de viver um surto, acidentalmente induzido pela mistura de medicamentos.




O livro de estréia da cantora e compositora Adriana Calcanhotto, Saga lusa é o relato de uma (dupla) viagem: uma bad trip medicamentosa – efeito de uma mistura de remédios para a gripe com a cortisona de uso contínuo – ocorrida durante uma turnê em Portugal. Além dos sintomas da gripe propriamente dita (tosse, febre, rouquidão), o inferno de Adriana incluiu alucinações, medos intensos, agitação, crises de riso e choro, perda da fluência da fala e uma insônia persistente, só entrecortada por horríveis pesadelos. O inevitável cancelamento de shows e entrevistas acrescentou ainda mais angústia ao quadro, compreensivelmente vivido pela artista como um desastre em termos pessoais e profissionais.

Tal episódio pareceria sob medida para gerar uma narrativa sombria, fortemente egocentrada e carregada
de autocomiseração. Mas acontece justo o oposto: conforme o dito popular evocado pelo psiquiatra na contracapa, Saga lusa é um ótimo exemplo da difícil arte de transformar o azedume do limão em deliciosa limonada. Adriana se revela dona de uma prosa fluente e coloquial, hábil em acompanhar o fluxo de pensamento e que tem no uso do humor e da auto-ironia seus traços mais marcantes.

O surto foi carinhosamente apelidado de “a Coisa”, ótima designação para isso que, sem nome, invade e ocupa o eu. O estranhamento de si prossegue no encontro com a imagem insone no espelho: com enormes olheiras, Adriana percorre sua saga acompanhada pela exótica figura do “urso panda disfarçado de cantora gaúcha”. Os capítulos em que conta como padeceu com a língua enrolada são dignos de figurar em uma antologia de humor. Convenhamos que a capacidade de rir de si mesma em uma situação dramática não é para qualquer um... Talvez a longa trajetória de psicanálise pessoal – mais de uma década – tenha algo a ver com isso (e também, é claro, com a possibilidade de escrever o livro).

E olhem que o limão era realmente azedo! O fato de ser uma intoxicação forte, inesperada e resistente a intervenções medicamentosas, assim como a circunstância de ocorrer em um país estrangeiro (quando se está literalmente em trânsito e sem a referência da rotina) decerto são fatores agravantes da situação. É de se perguntar como teria sido “a Coisa” – duração, intensidade, colorido afetivo – caso tivesse ocorrido em casa, sem a pressão de compromissos profissionais e na ronronante companhia da gata Bong Lé. É de cogitar, até mesmo, se um surto “doméstico” teria originado um produto como este livro. Por outro lado, não se trata de qualquer país – é Portugal, nação camonóloga – cuja estranha familiaridade conosco, sobretudo no que se refere ao idioma, talvez tenha contribuído para essa imersão lúdica na linguagem. Afinal, não é todo dia que se almoça um “prego”, que se está cercado por atendentes “giros” ou que o farmacêutico propõe um “Diazepam no rabinho”.



A dor na/como origem da obra é um tema já quase arquetípico nas discussões sobre arte. Mais uma vez, também aqui, a escrita se mostrou um poderoso recurso, talvez o melhor deles, no enfrentamento da dor. O psicanalista J.-B. Pontalis lembra que, tal como o sonho e o luto, escrever é um trabalho psíquico, na medida que realiza uma transformação. Mas se a composição do livro certamente ajudou a dar uma forma para “a Coisa”, não é impossível que tenha ajudado a incrementar a intensa atividade mental daqueles dias. A própria autora destaca o caráter compulsivo de sua entrega à escrita, bem como à navegação pela internet e leitura dos e-mails.

Além dos evidentes talentos pessoais de Adriana, creio que parte do sucesso na realização da limonada pode ser creditada a uma presença bastante consistente do Outro, seja como fortíssima referência cultural, seja como destinatário imaginário da escrita, seja ainda como pessoas concretas que, de perto e de longe, ofereceram suporte (ou se ofereceram como suporte) nesse momento de perda absoluta de fronteiras – produtores, amigos, médicos, analista.

Cabe por fim perguntar por que o livro agrada tanto, ao ponto de vários leitores (eu inclusive) lamentarem seu término e se colocarem já na expectativa de um próximo. Penso que em Saga lusa nosso componente voyeurista tem a oportunidade de privar da intimidade de uma “celebridade”. Mais ainda, testemunhamos um momento em que ela se encontra fragilizada, às voltas com febres e piriris que acometem a todos, anônimos mortais. Creio que parte significativa de nosso prazer decorre da des-idealização que tal testemunho proporciona: desfeita a aura do glamour que supomos envolver nossos ídolos, resta a constatação de que a possibilidade de sofrimento físico e psíquico está aí, sempre à espreita, democraticamente disponível para cada um de nós.

Todo mundo já se sentiu atravessado por uma vontade que não controla, já estranhou sua própria imagem no espelho, já fracassou nas tentativas de dormir ou em deter pensamentos indesejáveis, já foi tomado por medos terríveis. Em alguma medida, todos temos, cotidianamente, que nos haver com “a Coisa”, com a árdua tarefa psíquica de transformar limões em limonada. Identificamo-nos com os maus bocados de Adriana Calcanhotto não apenas porque a narrativa é inteligente e bem-humorada, mas também porque, afinal de contas, todo mundo tem seu dia de panda...

Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/todo_mundo_tem_seu_dia_de_panda.html

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