domingo, 20 de novembro de 2011

Coreografias cerebrais.

Estudos recentes com uso de técnicas de imageamento do cérebro revelam processos neurais complexos por trás da habilidade de dançar.



O ritmo parece algo tão natural que muitos acreditam ser automático ouvir música e marcar o compasso com os pés ou balançar o corpo, às vezes sem nos darmos conta de que estamos nos movimentando. Essa habilidade, porém, é uma novidade evolucionária entre os humanos e nada comparável acontece com qualquer outra espécie animal. Nosso dom para a sincronização inconsciente nos permite utilizar a confluência de movimentos, ritmo e representações gestuais – longe da prática coletiva mas sincronizados. Dançar exige um tipo de coordenação interpessoal no espaço e tempo quase inexistente em outros contextos sociais. E, embora seja uma forma fundamental de expressão humana, por muito tempo recebeu pouca atenção dos neurocientistas. Entretanto, recentemente, pesquisadores realizaram os primeiros estudos com imageamento do cérebro de dançarinos amadores e profissionais.

Essas investigações esclarecem pontos intrigantes sobre a complicada coordenação mental necessária para executar até mesmo os passos aparentemente mais básicos. Os estudos começaram com a análise de movimentos isolados como os giros do tornozelo ou o tamborilar dos dedos. Esses trabalhos revelaram informações sobre como o cérebro coordena ações simples. Pular com um pé só exige consciência espacial e equilíbrio, além de intenção e sincronismo (habilidades ligadas ao sistema sensório-motor). O córtex parietal posterior – situado na parte de trás do cérebro – traduz informações visuais em comandos motores, enviando sinais para as
regiões de planejamento do movimento no córtex pré-motor e na área motora suplementar. Essas instruções vão para o córtex motor primário onde são gerados então impulsos neurais que viajam para a medula espinhal e para os músculos, provocando contrações.

Ao mesmo tempo, os órgãos sensoriais nos músculos mandam uma resposta ao cérebro, dando a orientação exata do corpo no espaço por meio de nervos que passam pela medula espinhal até chegar ao córtex. Os circuitos subcorticais do cerebelo e dos gânglios de base também ajudam a atualizar os comandos motores com base na resposta sensorial e no ajuste de movimentos. O que permanece sem resposta é se esses mesmos mecanismos neurais se ampliam para permitir que essas manobras sejam tão graciosas quanto uma pirueta, por exemplo.

Para responder a essa questão, realizamos o primeiro estudo de imageamento cerebral dos movimentos da dança, em conjunto com nosso colega Michael J. Martinez, do Health Science Center da Universidade do Texas, em San Antonio, usando dançarinos amadores de tango como voluntários. Escaneamos o cérebro de cinco homens e cinco mulheres usando a tomografia de emissão de pósitrons, que registra as mudanças no fluxo sangüíneo cerebral seguidas por alterações na atividade cerebral. Os pesquisadores interpretam o aumento no fluxo sangüíneo em uma área específica como sinal de uma atividade maior entre os neurônios da região. Nossos voluntários permaneceram parados dentro da máquina de tomografia, com a cabeça imobilizada, mas movendo as pernas e deslizando os pés por uma superfície inclinada. Primeiro, pedimos que fizessem o passo quadrado, derivado do passo básico do tango argentino chamado salida, sincronizando seus movimentos no ritmo das músicas que ouviam por fones. Em seguida, escaneamos o cérebro dos dançarinos enquanto flexionavam os músculos da perna no ritmo da música, sem de fato moverem esses membros. Ao subtrair a atividade cerebral obtida por essa simples flexão daquela registrada enquanto “dançavam”, focarmos nossa atenção em áreas cerebrais vitais para direcionar as pernas pelo espaço, gerando padrões específicos de movimento.

Como era esperado, essa comparação eliminou muitas das áreas motoras básicas do cérebro. Uma área utilizada foi a parte do lobo parietal que contribui para percepção e orientação espacial. Na dança, a cognição espacial é, primeiro, cinestésica: sentimos o posicionamento do tronco e membros o tempo todo, mesmo com os olhos fechados, graças aos órgãos sensoriais dos músculos. Eles graduam a rotação de cada junta e a tensão dos músculos e retransmitem essas informações para o cérebro que cria uma representação articulada do corpo como resposta. Mais especificamente, identificamos ativação no precuneus, região do lobo parietal muito próxima de onde fica a representação cinestésica das pernas. Acreditamos que o precuneus contenha um “mapa” cinestésico que permite uma consciência do posicionamento do corpo no espaço enquanto as pessoas se movem à sua volta. Não importa se alguém está dançando uma valsa ou andando em linha reta: o precuneus ajuda a traçar seu caminho e assim o faz a partir de uma perspectiva centrada no corpo.



Em seguida, comparamos as tomografias realizadas durante a dança com aquelas feitas enquanto nossos voluntários faziam os passos do tango sem música. Ao eliminar as imagens das regiões do cérebro em comum ativadas pelas ações, esperávamos identificar áreas críticas para a sincronização dos movimentos com a música. Novamente, essa subtração removeu praticamente todas as áreas motoras do cérebro. A diferença principal estava na parte do cerebelo que recebe informações da medula espinhal. Embora ambas as condições tenham ativado essa área – o vérmis anterior – os passos de dança sincronizados com a música geraram significativamente mais fluxo de sangue no local que a dança auto-ritmada.

Embora preliminares, nossos resultados nos levam a crer na hipótese de que essa parte do cerebelo atua como um tipo de maestro, monitorando as informações em várias regiões do cérebro. O cerebelo como um todo atende a todos os critérios para um bom metrônomo neural: recebe uma ampla gama de informações sensoriais dos sistemas corticais auditivo, visual e somatossensório – uma capacidade necessária para sincronizar movimentos a diversos estímulos, desde sons até flashes luminosos e toques; e contém representações sensório-motoras para o corpo inteiro.

Inesperadamente, nossa segunda análise também elucida a tendência dos humanos de mover os pés inconscientemente ao ritmo de uma música. Ao comparar as imagens dos movimentos sincronizados com o som às dos movimentos auto-ritmados, descobrimos que uma parte inferior da via auditiva, uma estrutura subcortical chamada núcleo geniculado medial – MGN, na sigla em inglês –, era ativada apenas durante a primeira ação. No início, partimos do pressuposto de que esse resultado refletia meramente a presença de um estímulo auditivo – isto é, a música – na situação sincronizada, mas outro conjunto de imagens de controle excluiu essa interpretação: quando nossos voluntários escutavam música, mas não moviam as pernas, não detectamos mudança no fluxo sangüíneo do MGN.

Assim, concluímos que a atividade do núcleo refere-se especificamente à sincronização e não apenas ao ato de ouvir. Essa descoberta nos levou a admitir a hipótese de que o sincronismo inconsciente ocorra quando uma mensagem auditiva neural se projeta diretamente nos circuitos auditivos e de ritmo presente no cerebelo, desviando-se de áreas auditivas superiores no córtex cerebral.

Outras partes do cérebro são ativadas quando observamos e aprendemos passos de dança. Os pesquisadores -Beatriz Calvo-Merino e Patrick Haggard, da Universidade College London, e seus colegas pesquisaram se áreas cerebrais específicas se tornavam ativas preferencialmente quando as pessoas observavam passos que já dominavam. Ou seja, será possível que existam áreas cerebrais que se ativam quando bailarinos assistem a uma apresentação de balé, mas não, por exemplo, quando assistem a uma apresentação de capoeira? Para desvendar esse mistério, a equipe fez ressonâncias magnéticas funcionais de dançarinos, capoeiristas e não-praticantes à medida que observavam vídeos de três segundos de movimentos de balé e capoeira, sem áudio. Os pesquisadores descobriram que a experiência dos observadores tinha grande influência no córtex pré-motor: a atividade no local aumentou apenas quando os voluntários observavam as danças que eles mesmos sabiam executar. Outro trabalho oferece uma explicação provável. Os cientistas descobriram que, quando as pessoas observam ações simples, áreas do córtex pré-motor envolvidas na realização dessas ações se ativam, o que sugere que nós mentalmente ensaiamos o que vemos – uma prática que pode nos ajudar a aprender e entender novos movimentos. Os pesquisadores estão avaliando até que ponto os humanos dependem de circuitos de imitação desse tipo.



Em um trabalho posterior, Calvo-Merino comparou o cérebro de bailarinos de ambos os sexos enquanto observavam vídeos de dançarinos homens e mulheres praticando passos específicos para cada gênero. Novamente, os níveis mais altos de atividade no córtex pré-motor eram dos homens que observavam movimentos apenas masculinos, e de mulheres que observavam gestos só femininos.

Na verdade, a capacidade de ensaiar um movimento na mente é vital para as habilidades de aprendizado motor. Em 2006, Emily S. Cross, Scott T. Grafton e seus colegas do Dartmouth- College avaliaram se os circuitos de imitação no cérebro aumentam sua atividade à medida que ocorre o aprendizado. Por várias semanas, a equipe realizou ressonâncias magnéticas funcionais de dançarinos à medida que aprendiam uma seqüência complexa de dança moderna. Durante o exame de imageamento, os voluntários observavam vídeos de cinco segundos que mostravam algum movimento que já dominavam ou outros passos diferentes, não-relacionados ao contexto. Após cada clipe, os voluntários classificavam sua capacidade de executar satisfatoriamente os movimentos que observaram. Os resultados confirmaram a hipótese de Calvo-Merino e de seus colegas. A atividade no córtex pré-motor aumentou durante o treinamento e, de fato, correspondia às avaliações dos voluntários sobre sua capacidade de realizar um segmento de dança observado.

Conclusão: aprender uma seqüência motora complexa ativa, além de um sistema motor direto para o controle das contrações dos músculos, um sistema de planejamento motor que contém informações sobre a capacidade do corpo de realizar um movimento específico. Quanto mais experiente a pessoa se torna em um determinado padrão motor, melhor consegue imaginar qual a sensação de executá-lo, e assim, fica mais fácil realizá-lo. Entretanto, como nossa pesquisa demonstra, a capacidade de simular uma seqüência de dança – ou fazer um saque no tênis – não é uma atividade simplesmente visual, também é cinestésica. Aliás, a verdadeira aptidão exige, de certo modo, a criação de uma imagem motora nas áreas de planejamento do movimento do cérebro.

PAPEL SOCIAL
Afinal, por que as pessoas dançam? Certamente a música e a dança estão intimamente relacionadas. Em muitos casos, a dança gera som. Os danzantes (ou “dançarinos”) astecas da Cidade do México vestem calças chamadas chachayotes, bordadas com sementes da árvore ayoyotl, que emitem um som a cada passo. Em muitas outras culturas, as pessoas usam objetos que produzem sons – de metal na sola dos sapatos a castanholas e guizos – no corpo e nas roupas enquanto dançam. Além disso, os dançarinos freqüentemente batem palmas e estalam os dedos. Como resultado, estabelecemos a hipótese da “percussão do corpo” em que a dança evoluiu inicialmente como um fenômeno sonoro.

Entretanto, diferentemente da música, a dança é usada para representar e imitar gestos, o que sugere que também possa ter atuado como forma primitiva de linguagem. É interessante observar que durante a execução dos movimentos, em nosso estudo, identificamos ativação em uma região do hemisfério direito correspondente à área de Broca (associada à produção da fala) no hemisfério esquerdo. Nos últimos anos, pesquisas revelaram que essa região também tem uma representação das mãos. A descoberta reforça a teoria gestual da evolução da linguagem. Seus defensores argumentam que a linguagem evoluiu inicialmente como um sistema de sinais antes de se tornar vocal. Nosso estudo está entre os primeiros a demonstrar que o movimento das pernas ativa a área do hemisfério direito correspondente à área de Broca, o que dá mais sustentação à idéia de que a dança inicia como uma forma de comunicação representativa.

Em um estudo de 2003, Marco Iacoboni, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, e seus colegas aplicaram estímulo magnético no cérebro para interromper o funcionamento da área de Broca ou de sua homóloga. Em ambos os casos, os voluntários foram menos capazes de imitar os movimentos dos dedos com a mão direita. O grupo concluiu que essas áreas são essenciais para a imitação, um ingrediente-chave para o aprendizado e para a difusão da cultura.

Também temos outra hipótese. Embora nosso estudo não envolva exatamente movimentos imitados, tanto dançar tango quanto imitar movimentos com os dedos exige que o cérebro ordene séries de ações interdependentes. Da mesma forma que a área de Broca nos ajuda a combinar corretamente palavras e frases, sua homóloga pode servir para posicionar unidades de ações em seqüências contínuas. Essa interação permite que as pessoas não só contem histórias usando o corpo como também façam isso ao mesmo tempo que sincronizam seus movimentos com os de outros, de maneira a estimular a coesão social.



CONCEITOS-CHAVE
- A dança é uma forma fundamental da expressão humana que provavelmente evoluiu junto com a música. A interação dessas duas formas de expressão permite o surgimento do ritmo

- Dançar exige habilidades mentais especializadas. Em uma área do cérebro está representada a orientação do corpo, que ajuda a direcionar nossos movimentos pelo espaço; outra região funciona como um tipo de sincronizador, tornando possível combinar os movimentos ao ritmo da música.

- A sincronização inconsciente – o processo que nos faz marcar o ritmo distraidamente com os pés – é o reflexo de propensão para dançar. Isso ocorre quando certas regiões cerebrais subcorticais se comunicam, desviando-se de áreas auditivas superiores.

COREOGRAFIA MENTAL
VÉRMIS ANTERIOR
Esta parte do cerebelo recebe informações da medula espinhal e aparentemente age como se fosse um metrônomo, ajudando a sincronizar os passos de dança à música.

NÚCLEO GENICULADO MEDIAL
Uma interrupção ao longo da via auditiva inferior, esta área aparentemente ajuda a configurar o metrônomo do cérebro e é responsável por nossa tendência para tamborilar os dedos inconscientemente ou balançar o corpo ao ritmo de uma música. Reagimos inconscientemente, pois a região está conectada ao cerebelo, comunicando informações sobre o ritmo sem “falar” com as áreas auditivas superiores no córtex.

PRECUNEUS
Por conter um mapa baseado nos estímulos sensoriais do próprio corpo, o precuneus ajuda a identificar o trajeto de um dançarino a partir de uma perspectiva voltada para o corpo, ou egocêntrica.

Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/coreografias_cerebrais.html

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