domingo, 16 de outubro de 2011

Otelo e a doença da suspeita.

Neuropsiquiatria é o ramo médico que integra os domínios da neurologia e da psiquiatria, e suas relações. Em muitas obras da literatura brasileira e mundial, podem-se encontrar personagens que traduzem as mais diversas manifestações de patologias. Muitas vezes, essas obras fictícias mostram com tanta veracidade o quadro patológico que são utilizadas para o entendimento da patologia em si.
Com a obra Otelo, o escritor inglês William Shakespeare nos apresentou o personagem título, que levado pelo ciúme desenvolve a trama trágica.
Segue abaixo um ensaio publicado na revista Mente e Cérebro em junho deste ano, que analisa o perfil de Otelo sob o ponto de vista de um novo diagnóstico da neuropsiquiatria: o Ciúme Patológico.




Há mais de 400 anos o personagem – marcado pelo ego frágil, controle emocional falho e visão distorcida da realidade – causa fascínio, a ponto de ter motivado a criação de um conceito psiquiátrico: o ciúme patológico.
Os textos de William Shakespeare são caracterizados por descrições minuciosas das paixões humanas e da loucura que muitas vezes as acompanha. O dramaturgo inglês apreciava personagens extremados, representações de violência e cenas de morte. A insanidade desenvolvida por Otelo marcou a subjetividade ocidental, por sua precisão e universalidade. É por esse motivo que análises do texto continuam a surgir e a se contradizer reciprocamente e as representações da peça nunca cessaram, desde sua primeira montagem, em 1604. E muitos estudos e artigos privilegiam os aspectos psíquicos do protagonista. Aparentemente, Shakespeare estava bem informado sobre a então emergente ciência do alienismo, em uma época na qual imperavam as superstições e conhecimentos sobre demonologia. Isso o levou a desenvolver em sua obra uma abordagem moderna da loucura, entendida essencialmente como a incapacidade de perceber e interpretar as próprias emoções (ou paixões). Por isso não surpreende que psiquiatras tenham utilizado um de seus personagens mais famosos para designar um distúrbio comportamental: a síndrome de Otelo.


A trama é simples. Um prestigiado general de pele morena (Otelo, o mouro) casa-se em segredo com a bela Desdêmona, filha de um nobre veneziano. Iago, amigo e subordinado do protagonista – e um dos mais famosos “malvados” da história do teatro –, faz de tudo para arruinar esse casamento e prejudicar seu superior hierárquico. Para atingir esse objetivo, instiga o ciúme, fazendo Otelo acreditar que a mulher o trai com Cássio, um jovem tenente. O plano funciona tão bem que Otelo acaba matando a mulher e suicidando-se em seguida. Para quem assiste às malvadezas de Iago, suas mentiras e audácia são de tirar o fôlego. Mas o conjunto dos personagens é constantemente traído por uma retórica excessiva: ele finge expor coisas que preferia esconder, mas que revela por se sentir obrigado pela amizade e fidelidade que o ligam a seus interlocutores. O mecanismo constitui a parte essencial do desenvolvimento do texto, até o desfecho trágico.

DE TRÊS TIPOS

Na verdade, com exceção das mentiras mais ou menos sutis de Iago, quais “provas” levarão Otelo a assassinar a esposa? Elas são risíveis: um lenço perdido e misteriosamente encontrado nos aposentos de Cássio, um mal-entendido durante uma discussão na qual o tenente fala de sua amante Bianca (que Otelo toma erradamente por Desdêmona), e as mãos úmidas da mulher, para ele um indício revelador de sua infidelidade (quando na verdade ela está simplesmente ansiosa). O cúmulo da ironia é que Otelo chega a considerar seu próprio ciúme uma prova da infidelidade da esposa: “Uma natureza não se deixaria invadir dessa forma pela sombra da paixão (ou emoção) sem um bom motivo. (...)Não são meras palavras que me tanto agitam”. E mesmo o assassinato de Desdêmona constituirá uma prova complementar da culpabilidade dela: “Eu sofreria a danação das profundezas do inferno, se não tivesse chegado a esses extremos sem motivos justos”.


Embalado pela eficácia de suas maquinações, Iago leva a simulação a ponto de colocar Otelo contra seu próprio plano, na famosa fala: “Oh! Cuidado com o ciúme, meu senhor! Ele é um monstro de olhos verdes, que produz o alimento do qual se nutre! Esse chifrudo vive na alegre embriaguez de quem, tendo certeza de sua adversidade, não ama aquela que o trai; mas oh! que malditos minutos ele conta, esse que ama, mas duvida, mas ama perdidamente!”. A ingenuidade do general, não somente por confiar cegamente em Iago, mas, sobretudo, por apostar em sua própria capacidade de discernimento, aparece em toda sua ironia quando ele afirma, convicto, que não é homem de sucumbir com facilidade ao ciúme. E Iago não precisa mais do que concluir hipocritamente: “Eu devo rogar que não deis a minhas palavras um desfecho mais grave, um alcance mais amplo do que o de mera suspeita”.



A peça é um estudo magistral do ciúme patológico, um tema inúmeras vezes dissecado por pesquisas clínicas posteriores. Hoje, sabe-se, por exemplo, que essa emoção extremamente perturbadora vem acompanhada de perturbações psicológicas. Os homens são particularmente sensíveis à simples representação mental de uma infidelidade sexual e esses pensamentos costumam ser suficientes para aumentar a pressão sanguínea e fazer soar o alarme do sistema nervoso autônomo. Iago abusará dessa fragilidade para levar seu general à loucura, por exemplo, quando sugere a ele, com ar de quem não quer nada: “Agradar-lhe-ia assistir, estupefato, a um grosseiro flagrante e vê-la ser assediada?”.


Entretanto, ainda é nebuloso o que exatamente separa a patologia da normalidade. Para Sigmund Freud, o ciúme serve para convencer o parceiro de que é digno do amor a ele dedicado. Ou seja: está vinculado ao próprio narcisismo. Em seu ensaio Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade (1922), o criador da psicanálise estabeleceu três estágios: o normal ou concorrencial (no qual está presente uma dose de homossexualidade latente); o projetado (o próprio ciumento tem tendência a ser infiel e vê essa tendência no parceiro); e, por fim, o delirante (de teor paranoico).

À PROCURA DE PROVAS

Inúmeras expressões foram utilizadas para designar as formas patológicas de ciúme – mórbido, psicótico, neurótico, sexual, erótico, paranoia conjugal, delírio de infidelidade etc. O termo “síndrome de Otelo” foi sugerido em 1955 pelos neuropsiquiatras John Todd e Kenneth Dewhurst para designar um complexo de pensamentos e emoções irracionais, muitas vezes associado a comportamentos exagerados e violentos, derivados da exacerbada preocupação com a suposta infidelidade do parceiro, baseada em provas inconsistentes e por vezes imaginárias. A manifestação mórbida se apresenta sob a forma de interpretações delirantes de acontecimentos ordinários, de uma resistência frente aos elementos que contradizem o delírio e de acusações injustas contra o parceiro, que podem acarretar comportamentos perigosos. Como sugere Emília, criada de Desdêmona e mulher de Iago, o ciúme mórbido é uma entidade que ri da realidade. À mulher de Otelo, que garante nunca ter dado qualquer motivo para que o marido desconfiasse dela, a moça responde: “Mas aos corações ciumentos essa resposta não basta; nem sempre sentem ciúme por causa de um motivo. O ciúme é um monstro gerado por si mesmo”.


O distúrbio é registrado no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM na sigla em inglês), guia oficial de perturbações mentais, atualmente em sua quarta versão. Classificada na parte dedicada à esquizofrenia e outras perturbações psicóticas, a síndrome é denominada perturbação delirante de tipo ciumento. O diagnóstico, entretanto, não dá conta da diversidade de distúrbios: delírios de perseguição, obsessões, comportamento extremado e até mesmo psicopatia. Na maior parte das vezes, esses indivíduos apresentam grande imaturidade em suas relações e podem ter comportamentos agressivos, em geral associados ao consumo de álcool ou drogas i--lícitas. Seu desejo de controlar a fidelidade do parceiro costuma ser extremado, levando-o a segui-lo, a se esconder para pegá-lo em flagrante, a remexer metodicamente seus pertences, a fazer inspeções corporais etc. Se o problema perdura, com frequência o fim é trágico, chegando a desdobramentos como assassinato do cônjuge, de filhos do casal ou de um dos parceiros e suicídio. Com frequência, a pessoa é violentamente refratária a qualquer tipo de argumentação e ignora as provas de inocência que venham a ser apresentadas, mesmo que irrefutáveis.
Essa forma de negação é explícita em Otelo: “Meus pensamentos de sangue, em seu caminhar violento, jamais olharão para trás”. Aliás, só alguns instantes antes de matar Desdêmona é que Otelo revela o que condena, nela, e tenta arrancar uma confissão: “Confessa francamente teu crime; pois por mais que negues cada ponto, mesmo sob juramento, jamais poderás te afastar nem sufocar esse horrível pensamento que provocam em mim estes soluços”.


Talvez o sinal mais característico da síndrome de Otelo seja a procura obsessiva de “provas de infidelidade”. A menor observação, um mínimo gesto, ou um acontecimento qualquer são interpretados como demonstração óbvia de que o parceiro tem uma ligação extraconjugal.


Praticamente todos os fatores que predispõem ao ciúme mórbido, posto em evidência pelos pesquisadores modernos, estão em Otelo. Na maioria desses casos identifica-se, por exemplo, uma diferença marcante entre integrantes do casal, que pode ser relativa ao estrato social, à renda, à idade, aos dotes físicos, às origens ou à inteligência. Iago não deixa de lembrar Otelo das disparidades que o distinguem de Desdêmona: “Ter recusado tantos pretendentes de boa posição e que tinham com ela todas essas afinidades de pátria, de raça e de sangue, condições de que todos os seres são naturalmente tão ávidos! Hum! Isso revela um gosto bastante corrompido, uma horrenda depravação, pensamentos desnaturados; tudo o que eu temo é que como seu gosto se refere a inclinações pouco normais, ela termine por compará-lo às pessoas de seu próprio país de origem, e talvez termine por se arrepender do casamento”.

VÍTIMA OU ALGOZ?

Trata-se aqui, de maneira muito crua, das origens de Otelo, e mais precisamente da cor de sua pele (desse ponto de vista, a leitura da peça não consegue substituir a vivência da representação sobre um palco, onde o isolamento e a alteridade do mouro são constantemente visíveis). O processo que transforma a mera constatação dessas diferenças em ciúme mórbido é reconhecido pelo próprio protagonista: “Talvez por eu ser negro e não ter em minhas conversas as formas flexíveis dos intrigantes, ou talvez por eu já me inclinar sobre o vale dos anos; sim, talvez por tão pouco eu a tenha perdido! Estou ultrajado! E o consolo que me resta é desprezá-la”. Iago nunca precisou forçar a natureza de Otelo – bastou que tocasse sua frágil autoestima. A vergonha de si mesmo leva ao desprezo do outro e, em seguida, à suspeita de infidelidade. As diferenças em um casal, sejam elas reais ou imaginárias, remetem, portanto, a uma falha narcísica no ciumento (em geral associada à imaturidade afetiva). O ciúme possibilita então que se neutralizem esses sentimentos negativos por si mesmo e seja preservada uma imagem conveniente de si, muitas vezes exagerada, o que confere uma postura de moralidade e retidão ao ciumento, convencido de que está empenhado em defender a própria honra. Como diz o escritor francês do século 17 François La Rochefoucauld, “há no ciúme mais amor-próprio que amor”.


Alguns psicólogos observam que a impotência sexual é um importante fator desencadeador da síndrome de Otelo. Essa situação, negada ou minimizada, seria psiquicamente convertida na suposta hipersexualidade do parceiro. Ou o marido impotente apenas se sente culpado e se convence de que a parceira procurará satisfação em outro lugar.


Iago coloca em dúvida a virilidade do general. A impotência do mouro não é mencionada explicitamente, mas Shakespeare parece se referir ela por meio de artifícios. Primeiro, sua noite de núpcias é subitamente anulada pela notícia de um iminente ataque da marinha turca contra Chipre. Otelo e seu séquito vão imediatamente à ilha, mas quando chegam ao local ficam sabendo que o ataque havia sido cancelado por uma tempestade em alto-mar. Num segundo momento, que pode expressar uma castração simbólica, o general é privado da única coisa que sabe fazer: a guerra. Essas duas metáforas de impotência e de impossibilidade indicam a intenção de Shakespeare de comprometer a virilidade de seu herói.
Mais recentemente, os neurologistas recorreram à síndrome de Otelo para descrever casos de ciúme patológico decorrentes de perturbações cerebrais, incluindo Alzheimer, derrame, epilepsia, encefalite, tumor, doença de Huntington, uso abusivo de substâncias etc. No que diz respeito ao personagem, uma opinião mais específica parece delicado ou incongruente, ressalvando-se o fato de o próprio Iago informar ao espectador que o mouro sofre “de epilepsia”. Efetivamente, em duas ocasiões Otelo mergulha em uma crise de cólera. Evidentemente Iago não é neurologista, mas cabe perguntar qual seria o motivo que teria levado Shakespeare a considerar útil fazer casualmente essa menção, não fosse para expressar a ideia de que a loucura estaria enraizada em um distúrbio cerebral (uma teoria extremamente moderna, naquela época).


Por outro lado, se é o ciúme que torna Otelo rapidamente irreconhecível, a questão se refere mesmo ao diagnóstico. Se nos ativermos aos critérios do DSM-IV, diremos que Shakespeare conseguiu ir mais longe do que a maioria dos escritores e psiquiatras. Na primeira confrontação direta com Desdêmona, o personagem é incapaz de manter uma discussão racional que possibilitaria dirimir de imediato as dúvidas. Em vez disso, ele a acusa e insulta, sem dar qualquer explicação. Nesse momento, vemos a que ponto a realidade lhe escapa. O que ele lamenta não é tanto a infidelidade, mas sim o aniquilamento de uma imagem idealizada e fantasiada da mulher, construída para preservar o próprio ego. O simples questionamento dessa imagem é suficiente para destruir sua couraça psíquica – desnudar as fraquezas do ego.


Iago nunca precisou forçar a natureza de Otelo para enlouquecê-lo, bastou-lhe revirar o frágil ideal que o outro fazia de si mesmo e da esposa, e sobre o qual assentava todo seu universo (demonstrando assim que Otelo amava Desdêmona pela imagem que construiu dela). A partir de então, a mulher já não tem a mínima chance, pois não é dela que trata essa tragédia – mas sim da vaidade de Otelo.
A incapacidade de julgar e controlar as próprias emoções, mesclada à imaturidade emocional e a profundas falhas narcísicas, constitui o cerne do processo psicológico que levará Otelo à perdição. No entanto, especialistas em Shakespeare não são unânimes quanto a esse personagem. Muitos não veem senão uma vítima infeliz de um manipulador sem escrúpulos, e inúmeros estudos o defendem.


Mesmo depois do drama final, Otelo continua incapaz de encarar a própria responsabilidade naquele ato tresloucado. Em sua defesa, evoca o destino e a influência da lua, assim como seu sentido de honra: “Digam de mim que sou um honorável assassino, se assim preferirem; pois eu nada fiz por ódio, eu tudo fiz por honra”. Esse refrão é conhecido por muitos juízes que tratam de crimes passionais. O especialista em Shakespeare Leo Kirschbaum é bastante crítico com relação aos colegas que não medem esforços para defender Otelo. Ele argumenta não só que o general teria tido diversas oportunidades de frustrar o plano de Iago, mas, sobretudo, que a tolerância leva a uma leitura enganosa do texto, e que tais trabalhos se referem mais às tendências sexistas e românticas dos autores do que à própria obra.


Um desses críticos chega a ver no assassinato de Desdêmona uma prova “da nobreza dessa figura trágica” que é Otelo. Mas o próprio Shakespeare nos põe de sobreaviso contra uma leitura demasiado benevolente do personagem, uma vez mais pela boca de Iago: “Não nos cabe ser isso ou aquilo. Nosso corpo é nosso jardim e nossa vontade é o jardineiro. (...) Se a balança da vida não tivesse o prato da razão como contrapeso para o da sensualidade, nosso temperamento e a baixeza de nossos instintos nos levariam às mais desastrosas consequências. Mas nós temos a razão, para arrefecer nossas paixões furiosas, nossos impulsos carnais, nossos desejos desenfreados”.

Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/otelo_e_a_doenca.html

Fica então a dica de leitura alternativa o livro Otelo de William Shakespeare.

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