Lesões no lobo frontal podem desencadear a síndrome de Zelig, distúrbio raro, em que pacientes assumem novas identidades em resposta a estímulos ambientais.
Até os 65 anos o professor de literatura João D. era um líder político na pequena cidade onde morava. Apaixonado por teatro, atuou desde a adolescência em montagens de grupos amadores. Após sofrer uma lesão cerebral causada pela falta de oxigênio no cérebro durante um infarto, porém, sua vida se transformou. Semanas após receber alta do hospital, sua mulher, Lúcia, levou-o de volta à instituição, queixando-se de seu comportamento irritadiço e repetitivo. Ela estava assustada: João agora perdia facilmente o controle e, em algumas situações, parecia ser outra pessoa. Quando entrou no consultório, o professor mostrou-se cordial e colaborou com o neurologista que o examinava. Em dado momento, declarou: “Eu também sou médico”.
Por trás do paciente, Lúcia abanava a cabeça, fazendo sinal negativo para o neurologista. A entrevista e os exames clínicos foram suficientes para mostrar graves distúrbios de memória autobiográfica (que compreende episódios importantes da própria história de vida), ocorrência de confabulações (discursos fantasiosos e incoerentes) e desconhecimento da própria doença. João D. sofria também de amnésia anterógrada, disfunção que impede a fixação de novos eventos. Na prática, ele vive a contínua renovação do presente, desvinculada do passado – e esquece o que acabou de acontecer. Preocupada, Lúcia contou ao médico que o marido afirma ser colega de profissão de cada pessoa com quem se encontra. “Há poucos dias ele convenceu um advogado de ter feito curso de direito e de trabalhar até recentemente num escritório jurídico.”
NO FILME Zelig, de 1983, o protagonista, interpretado por Woody Allen, fica conhecido como “camaleão urbano”
A amnésia anterógrada é uma forma singular de perda de memória: não danifica recordações precedentes ao aparecimento da doença, mas impede a fixação mnemônica de qualquer evento posterior. Os pacientes vivem o eterno presente e ignoram inclusive o fato de estarem doentes. Casos de amnésia anterógrada pura são muito raros; sua ocorrência está freqüentemente associada à amnésia retrógrada. A manifestação simultânea decorre de lesões em áreas fundamentais da memória: hipocampo e corpos mamilares, duas pequenas protuberâncias na base do cérebro e fundamentais na consolidação das recordações.
Esses distúrbios mnêmicos não interferem na memória semântica, a das recordações de fatos e situações gerais, nem na memória episódica, que reúne lembranças não ligadas a vida pessoal. Registros atuais de amnésia anterógrada sinalizam que pode ser provocada por ansiolíticos benzodiazepínicos ou drogas usadas como pré-anestésicos. O neurologista americano Oliver Sacks tornou a patologia conhecida com a descrição de dois casos em seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu (Companhia das Letras, 1997). No primeiro relato, um marinheiro, ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, tem sua capacidade de recordação limitada a sete segundos. É como se tudo o que aconteceu depois de 1945 nunca tivesse existido. Como não registra as experiências posteriores a essa data, sente-se eternamente jovem. Na segunda história um dependente de álcool com significativa destruição dos corpos mamilares não se lembra de nada que lhe aconteceu após a manifestação da doença e, como João D., assume variadas personalidades: ao vestir uma camisa branca garante que é médico ou dentista, mas também pode se tornar açougueiro ou barbeiro. O personagem incorpora o papel e se identifica com pessoas, situações e objetos que o circundam.
CENA DIAGNÓSTICA
O médico suspeitou de uma doença neurológica rara, provocada pela perda de uma das funções do lóbulo frontal, área do cérebro que controla o comportamento e exerce censura sobre ações inoportunas. O distúrbio leva o paciente a imitar seu interlocutor e é sempre acompanhado do chamado comportamento de utilitarismo: basta o ambiente oferecer estímulos (como a presença de uma pessoa ou objeto) para que o paciente adapte sua própria personalidade à situação. Se ele encontrar numa sala uma bancada de sapateiro, por exemplo, aproveitará a situação e dirá que trabalha com conserto de sapatos.
Para comprovar a hipótese do distúrbio em decorrência da lesão no lóbulo frontal, a equipe médica decidiu submeter João a um teste pouco convencional cujo objetivo era compreender a imitação e determinar por quanto tempo esse comportamento permaneceria. O quadro clínico inusitado exigiu criatividade dos profissionais, que decidiram, com a autorização de Lúcia, “encenar” uma situação que lhes permitisse entender as reações do paciente.
Numa tarde, João e Lúcia encontravam-se na lanchonete do hospital, quando médicos da equipe iniciaram um diálogo a poucos metros do casal. Um deles declarou em voz alta: “Seria interessante agora tomar um belo drink”. Imediatamente, João colocou-se atrás do balcão e começou a manipular garrafas e copos: “Sou barman, estou aqui por um período de estágio durante duas semanas e espero ser admitido em caráter definitivo”, disse aos médicos.
O comportamento surpreende pela intensidade da identificação: na seqüência, João passa a explicar como o bar deve ser organizado e quais providências pretende tomar para atrair mais clientes. Ele mantém o seu papel por 15 minutos, até que os personagens que o impeliram à “interpretação” saiam de cena.
Em outra situação, João se sentiu no dever de contar que é um chef especializado no preparo de massas para pacientes em recuperação. Quando questionado sobre a alimentação adequada a pessoas com diabetes, ofereceu um ponto de vista genérico: “Devem evitar doces e comer coisas leves”. Durante a conversa os médicos o convidaram a utilizar alguns utensílios de cozinha à sua disposição, coisa que ele não fez, ainda que continuasse afirmando que era, de fato, cozinheiro.
Evidentemente, a identificação do paciente com o contexto se deve às relações tecidas com outras pessoas presentes e não somente aos objetos que o circundam. Essa constatação é confirmada num terceiro experimento: o paciente é levado à lavanderia do hospital e convidado a se ocupar dos panos sujos. Desta vez, porém, a reação não é de identificação: aceita com má vontade aquilo que lhe pedem para fazer e manifesta um grande desejo de terminar logo a tarefa, parecendo ansiar pela hora de ir embora.
Os médicos notam que em todas as situações João escolhe papéis de liderança, nos quais possa transmitir conhecimentos, em plena sintonia com o que aconteceu em sua vida. Durante os exames neurológicos, ele repete invariavelmente que é médico, e numa dessas ocasiões consegue manter seu papel por mais de 40 minutos. “Sou cardiologista, tenho inúmeros pacientes porque não faço questão de cobrar honorários exorbitantes como muitos de meus colegas; às vezes atendo pessoas até mesmo sem cobrar”, contou.
MIMETISMO E INSEGURANÇA
A síndrome da dependência ambiental foi também chamada síndrome de Zelig, por causa de Leonard Zelig, um provável portador do distúrbio que viveu nos Estados Unidos nos anos 20. O personagem se tornou famoso em 1983 com o filme homônimo dirigido e interpretado por Woody Allen. Usando efeitos especiais o diretor alternou seqüências em preto-e-branco para reproduzir imagens de época e conseguiu transformar em arte o drama de um homem “sem personalidade”. A dependência dos outros o induz não somente à identificação psicológica, mas também física. Zelig, chamado de “camaleão urbano”, tornou-se famoso. Na trama, a psiquiatra Eudora Fletcher, interpretada por Mia Farrow, procura restituir a identidade do personagem, o que de fato ocorre numa sessão de hipnose. O mimetismo psicológico encobre, na verdade, uma enorme insegurança e a busca desesperada por aprovação. Na tentativa de proteger-se contra um mundo a seu ver demasiadamente hostil, Zelig descobre que o melhor modo de agradar a qualquer pessoa é assemelhar-se a ela. E para isso se anula.
Ajudar João, infelizmente, é impossível: uma tomografia por emissão de pósitrons (PET) confirmou lesão irreversível no lobo frontal. Além do mais, a síndrome da identificação é agravada por amnésia anterógrada, que o impede de recordar as inúmeras personalidades que assume a cada momento. Os neurologistas reconhecem, porém, que não importa qual o comportamento assumido, algumas de suas características de personalidade permanecem preservadas. Como médico, barman ou chef ele mantém o entusiasmo, o desejo de ensinar e liderar, está sempre pronto para colocar as mãos em um novo projeto. No fundo, João faz agora aquilo que sempre desejou em sua longa carreira de ator amador: interpretar mil papéis importantes sobre o palco da vida.
Para conhecer mais:
Zelig (1983). Roteiro e direção de Woody Alen. Com Woody Allen, Mia Farrow e John Buckwalter. 79 min. Disponível em DVD.
NEURÔNIOS-ESPELHO permitem adequação à personalidade alheia
ESPELHO DAS EMOÇÕES
O comportamento de identificação imposta pelo ambiente foi descrito pela primeira vez em 1986 pelo neurologista francês François Lhermitte. O indivíduo afetado por essa patologia adapta sua personalidade ao espaço onde se encontra e assume características da pessoa com quem conversa. O estímulo pode ser concreto (móveis, objetos etc.) ou partir de sinais apresentados pelo interlocutor. Na base deste distúrbio encontra-se uma lesão muito grave dos lóbulos frontais, em particular da área que governa o comportamento social do indivíduo e mantém a relação entre personalidade e ambiente, de modo que seja sempre coerente. Na prática, trata-se de um sistema que, dentro do cérebro, cria a identidade individual.
Evidências científicas indicam que esse comportamento pode ser atribuído a distúrbios em circuitos que governam a capacidade de empatia e a possibilidade de “sintonizar-se” com emoções do outro. Nesse processo encontramos os neurônios-espelho: na falta de freios inibidores provenientes dos lóbulos frontais, porém, o mecanismo especular tem a vantagem de provocar a perda da identidade pessoal em favor de uma contínua adequação à personalidade alheia.
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/efeito_camaleao.html
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