domingo, 3 de junho de 2012

No limite da vida.

De onde vêm as estranhas imagens e sensações de “transição para o Além”? Pesquisadores acreditam que, ao se defrontar com o próprio fim, nosso cérebro recorre a estratégias de defesa, produzindo sensações que tornam esse momento menos assustador.


“Pena que v ocês me trouxeram de volta, o lugar onde eu estava era tão bonito!”, disse a mulher após ser “ressuscitada”. Pacientes que tiveram parada cardíaca, vítimas de afogamento ou pessoas que tentaram suicídio e passaram pela experiência de chegar ao limiar da morte dizem ter se sentido como numa viagem para o Além. Embora detalhes desse tipo de vivência e emoções despertadas por essas experiências variem caso a caso, estudos científicos mostram que alguns elementos característicos dessas situações sempre se repetem: quase que invariavelmente pessoas que “retornaram à vida” relatam sentimentos de leveza, paz, felicidade. Também se referem à impressão de abandonar o próprio corpo e observar a si mesmas da perspectiva externa.

Muitos dos pacientes que se aproximaram da morte dizem ter passado por uma espécie de zona de transição – quase sempre um túnel ou uma espécie de portal. Do outro lado, há uma luz clara e quente que os atrai de maneira irresistível e provoca um turbilhão de sentimentos positivos; às vezes também é possível ver paisagens paradisíacas. Às vezes, encontram seres iluminados ou parentes falecidos com os quais é possível uma comunicação sem palavras. As fronteiras entre o eu e o ambiente parecem se diluir e surge um sentimento de unidade com o Universo.

No final, porém, a experiência é abruptamente interrompida: aqueles que se imaginavam a caminho de outro mundo são arrancados de lá e percebem, em geral decepcionados, que continuam em seu corpo. Aproximadamente um terço dos que se aproximaram da morte, ou pelo menos acreditaram nisso, se lembram de experiências desse tipo. Mas talvez não sejam apenas momentos agradáveis que nos esperam à soleira da morte. Alguns dos que retornaram relatam um sentimento de pânico ou de um vazio infinito – e até mesmo a visão do inferno. Mas em todos os casos há uma coisa comum: as pessoas vivem nesse curto período de tempo muito mais do que seria possível na verdade.

Depois dessas vivências (agradáveis ou não) freqüentemente as pessoas passam a priorizar valores como fraternidade, tolerância e espiritualidade. Muitos começam a viver mais intensamente, perdem o medo da morte e passam a acreditar em uma existência posterior. Atualmente, inúmeros neurocientistas, psicólogos e psicanalistas concordam que pessoas- psiquicamente saudáveis podem passar por essa experiência.


Acreditam também que a manifestação distingue-se de alucinações, sonhos e da fantasia de pacientes que querem chamar a atenção sobre si. A visão dessas imagens de tamanha complexidade já não pode ser explicada pela teoria, vigente durante vários anos, de que nessas situações o próprio nascimento é revivido ou de que os pacientes se lembram de percepções subliminares quando estão em estado de inconsciência.
Para algumas pessoas as experiências de quase-morte só podem ser interpretadas de uma maneira: a prova da existência de vida após a morte. Há até mesmo aqueles que acreditam que a base da religião, no fundo, está nas imagens vistas por pessoas prestes a morrer. Para os pesquisadores, porém, experiências vividas no limiar da morte provavelmente são somente resultado de processos biológicos.

Colisão de tempos

Estudos realizados nos últimos anos na área de neurologia fornecem uma explicação bastante diferente: tudo indica que, nesses momentos, nosso cérebro não consegue processar o fim de sua existência e, como última estratégia de defesa, recorre a processos incomuns que nos presenteiam com essas experiências fora do comum.

Para interpretarmos corretamente os processos que ocorrem durante uma experiência de quase-morte é preciso compreender que nosso cérebro funciona como uma máquina de previsão do futuro. Ele se antecipa para organizar o presente com base em hipóteses sobre o que está por vir. Quando esse aparelho é confrontado de repente pelo pensamento “eu estou morrendo agora”, as diversas experiências de quase-morte se agrupam em torno desse acontecimento central. Todo o futuro se reduz a um único momento e, subitamente, não há mais seqüência de acontecimentos para planejar. A continuação do tempo se interrompe e os mecanismos psíquicos que em geral fornecem sentido aos eventos internos e externos já não conseguem manter sua atividade. Inédita, a situação força o psiquismo a buscar novas formas de lidar com as informações das quais o indivíduo se dá conta nesse momento extremo.

É como se o modo de funcionamento do cérebro, programado para ser contínuo, colidisse com o fim iminente de sua existência – e é esse choque de tempos que cria as imagens e percepções que temos durante experiências de quase-morte. Do ponto de vista científico, a exceção permite o estudo do cérebro numa situação em que uma de suas funções mais importantes está paralisada.


Experiências de quase-morte não surgem apenas como conseqüência do esvaziamento dos mecanismos de previsão de futuro, pelo fato de o futuro e o presente se fundirem repentinamente. Mas nessas condições podem ser notados no cérebro processos especiais que em geral ocorrem como pano de fundo e vêm à tona em situações de exceção.

Aparentemente, células cerebrais que utilizam os chamados receptores glutamatérgicos ionotrópicos, do tipo NMDA, para a transmissão de sinais neurológicos desempenham papel importante nesses casos. O psiquiatra Karl L. R. Jansen, do Hospital Maudsley, de Londres, chegou a essa conclusão com base em uma descoberta: os receptores NMDA reagem de maneira mais intensa durante anestesia por cetamina – droga derivada do cloridrato de fenciclidina, desenvolvida nos Estados Unidos; na década de 60, quando foi lançada, muitos jovens a utilizaram como alucinógeno.

Pacientes que recebem doses do anestésico freqüentemente vivenciam experiências muito semelhantes às de quase-morte. Mas os receptores não são influenciados apenas pelo anestésico. A falta de oxigênio, muito freqüente durante experiências de quase-morte, também pode exercer efeito sobre os receptores através de substâncias mensageiras – principalmente do monóxido de nitrogênio.

O que predestina os receptores NMDA a desempenhar papel especial durante as experiências de quase-morte? A resposta está em seu funcionamento incomum: eles se tornam ativos quando as atividades elétricas de diferentes regiões- cerebrais confluem para seus neurônios. Quando isso ocorre, a sucessão de atividades neurais pode se dar em um ritmo relativamente lento segundo os padrões usuais das células nervosas, já que os receptores NMDA trabalham muito mais devagar do que outros sistemas de transmissores-receptores.
Dessa forma, elas conseguem correlacionar uma série inteira de acontecimentos e são capazes de alterar o ritmo usual do cérebro. Aqui poderia estar a explicação para o fato de a memória ser invadida por um excesso de lembranças do passado durante experiências de quase-morte – sensibilizados, os receptores NMDA processam resumidamente inúmeras informações. O modelo baseado nesse tipo de receptor faz a conexão entre os fenômenos que ocorrem no consciente da pessoa que está próxima da morte e processos que se passam em seu cérebro.

Naturalmente, as experiências de quase-morte não podem ser explicadas apenas pela forma como os sinais são transmitidos pelos receptores NMDA. No entanto, se considerarmos as funções desempenhadas por eles, é possível estabelecer uma relação com as visões surgidas durante a experiência de quase-morte. Essas terminações nervosas estão ligadas ao sistema opióide, que ajuda o organismo a inibir a dor e contribui para o surgimento da sensação de paz e felicidade nesses momentos.

A impressão de “ausência de limites” – diluição das diferenças entre o sujeito e o ambiente – muitas vezes relatada por aqueles que “retornaram” também pode ser explicada pela atividade dos receptores NMDA. É provável que, em certas circunstâncias, nosso cérebro perca a capacidade de reconhecer objetos como tais quando passa, repentinamente, a abarcar um conceito temporal mais amplo, o que faz com que, em paralelo, o código sinalizador usual das células nervosas perca significados. É possível que a amígdala – núcleo cerebral em forma de amêndoa responsável pelo processamento de emoções como medo e pelas manifestações de agressividade – também desempenhe um papel importante nessas circunstâncias.
Sob o efeito da cetamina, a amígdala apresenta atividade neural mais baixa que a normal, e algumas pessoas experimentam sentimentos positivos de ausência de limites. Numa situação de quase-morte isso pode significar que quando não existe nenhuma possibilidade de ação os impulsos de ação que partem dessa região cerebral deixam de se manifestar – e os limites reais se dissolvem.

Memória para se salvar

Nos relatos de pessoas que sobreviveram a afogamentos é marcante a ênfase que dão à sensação de “incapacidade de agir”. O cansaço dos músculos, fatigados pela luta com a água, confunde-se com a exaustão psíquica e, nesse momento, podem surgir fragmentos de situações passadas. E ainda que tenham possibilidade de reagir as pessoas se deixam levar por essa espécie de devaneio. É interessante observar que, nesses casos, há forte influência do pensamento “eu estou morrendo!” e, com ele, vem a “colisão de tempos”.

Nesse caso, é importante saber o quanto as vítimas consideravam a situação perigosa; em que medida era possível agir – o que, certamente, teria desviado de divagações interiores; e se a colisão do presente com o futuro não foi evitada pelo fato de a pessoa ter podido se preparar para essa situação em decorrência de vivências anteriores.

É possível estabelecer conexão entre o curso dos acontecimentos e o tipo de experiência vivida. Exemplo: um operário de construção costumava trabalhar com um pesado cilindro vibratório que nivelava o asfalto recém-colocado. A máquina se movia lentamente e trabalhava de forma bastante autônoma. Certa vez, ela se aproximou tanto dele que o trabalhador não conseguiu se esquivar. Desesperado, tentou afastar o colosso que o esmagava. Para isso, utilizou tamanha força muscular que rompeu a articulação do polegar direito e quebrou um osso da pelve. Mas, no fim das contas, conseguiu se salvar.

Apesar de ter visto o seu fim tão próximo, o operário não viveu nenhuma experiência de quase-morte – pois toda a capacidade de seu cérebro estava direcionada para a ação. Se, por outro lado, a pessoa se encontra várias vezes em situação de grande perigo e conscientemente não sabe como reagir, se inicia uma avalanche de conteúdos da memória que ocupam a lacuna psíquica.

O biólogo evolucionista britânico Charles Darwin (1809-1882) viveu certa vez essa inundação de informações armazenadas quando tropeçou em uma escarpa e só instantes depois recuperou o equilíbrio. Darwin não passou por uma experiência de quase-morte, mas chegou a comentar, a respeito do fato: “Incrível a quantidade de coisas que pode passar pela cabeça de uma pessoa em um período tão curto”. Quem já tropeçou e tentou se equilibrar, instantes antes de se esborrachar no chão, provavelmente notou como o “tempo interno” parece diverso do cronológico nessas ocasiões- – e quantas emoções e pensamentos podem nos atravessar em apenas alguns segundos.

Essa reação do nosso cérebro faz sentido. Eventualmente, uma das muitas informações armazenadas na memória ainda pode nos ajudar a salvar nossa vida. O caso de Darwin mostra que as verdadeiras experiências de quase-morte só ocorrem quando o fluxo mnemônico já não funciona como “área de ação ampliada” – e não representa mais uma possibilidade de refúgio no passado para escapar da colisão de tempos.


Situação bastante diferente se apresenta quando alguém consegue se preparar para a morte durante muito tempo – o que acontece no caso de doenças prolongadas. Nesse caso, o paciente está preparado para o significado especial desse evento e não é mais surpreendido pela sua chegada – e, por princípio, a colisão de tempos não se configura. Mesmo que a pessoa tenha grande medo de morrer, esse sentimento não aparece de forma abrupta mas remonta a um tempo longínquo. Durante o período de convívio com a doença a pessoa tem a chance de ressignificar pelo menos alguns aspectos desse turbilhão emocional e de buscar sentidos para essa transição.

A experiência adquire aspectos bastante específicos no caso dos suicídios. Uma ocorrência recente ilustra isso. Um jovem resolveu tirar a própria vida com uma arma de pequeno calibre e escolheu fazê-lo numa edícula, ao lado da casa da família. Disparou um tiro, que o feriu sem maior gravidade. O rapaz, porém, passou a noite inteira caído, assaltado pela idéia recorrente de que estava morto. Pela manhã, quando a luz entrou pelas janelas do cômodo, compreendeu que aquele ainda não era seu fim. Portanto, se levantou e foi para o hospital. E levou consigo a bala que tinha penetrado em seu crânio, na região acima do nariz. Como ao atirar ele havia inclinado muito o cano da arma, a bala percorreu um trajeto através dos ossos do crânio, sem lesar o cérebro e nenhum vaso sangüíneo importante. O projétil saiu pelo osso atrás da orelha esquerda. Para esse homem, a idéia de estar morto parecia menos angustiante que o fato de estar vivo – viver uma experiência de quase-morte (que aplacasse o mal-estar diante do desconhecido que aparecia de maneira repentina), portanto, não fazia sentido para ele.

Mesmo a falta de oxigênio não basta, em muitos casos, para desencadear uma experiência de quase-morte; ela tem de ser acrescida à consciência de que se está morrendo justamente naquele momento. Outro fato vivido por mim pode esclarecer essa questão: quando trabalhava anteriormente em uma unidade de terapia intensiva, eu tinha de vigiar, de uma sala contígua aos quartos, os monitores dos pacientes cardíacos. Certa vez, o eletrocardiograma de um paciente registrava movimentos normais, mas se transformou em uma espécie de curva senoidal plana. Corri para o quarto do paciente, convencido de que teria de ressuscitá-lo. No entanto, ele estava sentado em sua cama! Exclamei, muito espantado: “Tudo bem, sr. H.?”. “Sim”, respondeu com uma expressão satisfeita – e desmaiou em seguida. Há uma justificativa para isso: calcula-se que o cérebro consiga manter a consciência por um período de 15 a 20 segundos sem que o coração bombeie sangue até ele. O paciente não tinha nem percebido que seu coração não estava mais batendo direito. O sr. H. foi reanimado – e ele também não viveu nenhuma experiência- de quase-morte, já que não se deu conta do risco que correra.

Luz intensa

Para que se tenha a sensação de “atravessar o portal para o Além” é obrigatoriamente necessário que a pessoa seja acometida de repente pelo pensamento de que está vivenciando a própria morte. No entanto, há casos em que as pessoas passam por experiências semelhantes às vividas em situação de quase-morte sem que vejam sua vida ameaçada – foi o caso, por exemplo, de uma paciente cujo hemisfério cerebral direito havia sido narcotizado por um barbitúrico. O outro lado do cérebro permaneceu ativo e a parte narcotizada continuava observando o ambiente à sua volta.

Ao final do procedimento, a mulher contou que vira uma luz intensa. Naquele momento, ela perguntou por que aquilo estaria acontecendo – pois não considerava sua vida ameaçada. Aparentemente, a visão teve relação com o método utilizado para anestesiá-la: por meio de um cateter inserido na artéria interna da cabeça. O anestésico provocou um intumescimento dos vasos sangüíneos da retina ocular – o que parece ter alterado momentaneamente sua percepção da luminosidade.

Registros como esse nos levam a considerar que a luz visualizada em experiências de quase-morte poderia estar relacionada não apenas à baixa circulação sangüínea no cérebro, mas também ao funcionamento dos olhos. De qualquer forma, no caso dessa paciente houve uma importante diferença em relação a uma verdadeira experiência de quase-morte: a visão da luz não despertou nela nenhum sentimento de felicidade.

Fenômenos luminosos são, além disso, conhecidos pelos casos de desmaio. Nessa ocasião, as pessoas não apenas relatam que sua visão ficou escura, mas elas freqüentemente também vêem “estrelinhas”. Quando a visão normal é retomada e os olhos voltam a se “conectar” ao sistema visual do cérebro, a pessoa pode vivenciar tal retorno como a visão de uma claridade exagerada.

Aqui se evidencia mais uma característica importante do cérebro: além de elaborar previsões, ele produz sentidos. Nossa mente não é capaz de memorizar dados que não tenham algum significado (ainda que distorcido). Por isso o aparelho psíquico se empenha em conferir alguma razão a tudo o que percebe. Não é raro, portanto, que o cérebro interprete uma claridade repentina como a saída de um túnel escuro. E enquanto os sistemas de transmissão que criam a sensação de felicidade continuarem ativos, não é difícil que apareça a impressão de libertação do canal escuro acompanhada de um sentimento de êxtase – decorrente de outra interpretação do cérebro.

Flutuando no hospital

Até mesmo as “experiências extra-corporais” (a sensação de sair do próprio corpo) podem ser explicadas fisiologicamente. Não é incomum “nos vermos” de uma perspectiva externa. Quando pedimos às pessoas que se lembrem de alguma vez em que estiveram em uma piscina, por exemplo, muitas descrevem a cena como se vissem a si mesmas na água. Em sua memória, portanto, elas se observam de uma perspectiva irreal, ou seja, de longe.

Somos treinados culturalmente a considerar a visão de imagens internas da perspectiva dos próprios olhos. Mas os centros cerebrais que rotineiramente trabalham com múltiplas abordagens têm a capacidade de elaborar uma representação mental do próprio indivíduo com base no olhar externo. Em situações de necessidade, o sistema nervoso se lembra de alternativas e recorre a esses registros. Uma das influências mais importantes sobre as diferentes visões – reais ou imaginárias – que se pode ter de si mesmo certamente se deve à retratação das figuras em perspectiva, comuns desde a Renascença. Experiências extracorporais, no entanto, também podem ser provocadas artificialmente.

O neurologista suíço Olaf Blanke e sua equipe do Hospital Universitário de Genebra prepararam uma operação na qual um foco de epilepsia deveria ser removido do lobo temporal do córtex de uma paciente. Para tanto, vários pontos do cérebro foram estimulados por finos eletrodos para que fosse possível reconhecer as principais regiões cerebrais. Quando os médicos aplicaram uma leve corrente elétrica no chamado giro angular do hemisfério cerebral direito, a mulher disse ter a sensação de estar afundando ou caindo. Com uma corrente mais forte, experimentou uma sensação de leveza – parecia flutuar dois metros acima da cama e, do alto, olhava para o seu corpo deitado.

Para Blanke e outros neurologistas não há dúvida: esse tipo de experiências “extracorpórea” está fundamentada no funcionamento cerebral. Da mesma forma, durante experiências de quase-morte determinadas regiões são ativadas pela colisão de tempos – e provavelmente também pela falta de oxigênio. Tudo indica que certas sensações experimentadas nessas circunstâncias já existam em nosso cérebro – mas para serem usadas em vida e não como visão do Além.

Por trás de percepções como a visão do próprio corpo de uma perspectiva externa improvável, da sensação de felicidade intensa ou da luz no fim do caminho escuro possivelmente estejam processos neurológicos simples, geridos pelo sistema nervoso. A constatação de que se está morrendo pode desencadear simultaneamente vários desses mecanismos, dependendo da freqüên-cia com que somos confrontados com essa situação e de quais possibilidades de reação ainda dispomos.

O cérebro, como máquina de previsão do futuro, faz com que, devido à colisão de tempos, conteúdos psíquicos – que em uma situação normal seriam identificados no futuro – pareçam estar no presente, de forma deslocada. Devido a essa nova perspectiva, ocorrem eventos que parecem extra-sensoriais. E eles possam ser classificados assim – no entanto, apenas na medida em que se trata de autopercepções do cérebro e não de impressões adquiridas por meio dos órgãos dos sentidos.

Para a ciência, o que causa espanto não é o fato de depararmos de repente com uma luz intensa em vista da morte. Para ela, o que ainda permanece inexplicável é como essa percepção da luz surge no consciente. E por que as pessoas vêem um clarão ou um círculo de luz – e não outras formas? Talvez as experiências de quase-morte possam nos ajudar a compreender como funciona nossa percepção da luminosidade – mas elas não devem nos desviar da admiração pela própria percepção.

De qualquer forma, devíamos ser gratos pelo fato de nosso cérebro providenciar recursos de emergência em situações extremas, que normalmente seriam marcadas apenas pelo medo e pelo desespero. Por si só, esse mecanismo já é suficientemente interessante – ainda que não possamos encontrar justificativas biológicas para o sobrenatural.


O que vem depois
Os questionamentos sobre o que espera o homem após a morte são tão antigos quanto a própria humanidade. Cada uma das grandes religiões universais desenvolveu seu próprio conceito do Além. Para as três grandes crenças monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – a morte é definitiva. Isso significa que, depois dela, a vida já não pode continuar na Terra.

No judaísmo arcaico, a idéia do Além ainda não tinha um papel central. O ideal de vida dos homens consistia em viver plenamente, em comunhão com Deus – e morrer. Somente mais tarde surgiram questões sobre a existência de uma justiça compensadora – pois claramente nem todos os homens recebiam ainda em vida a recompensa ou a punição de Deus por seus atos. A expectativa da vinda do Messias resolveu o conflito, disseminando a esperança de um futuro rei pacificador que construirá o seu reino paradi-síaco ainda na Terra. Os judeus esperam a ressurreição dos mortos somente após esse advento. Nesse ponto, as opiniões se dividem: enquanto alguns partem do princípio de que apenas os justos se livrarão de sua sofrida existência como sombras no mundo dos mortos, outros acreditam que, no princípio, todos os mortos serão ressuscitados para então receberem sua justa punição no Juízo Final – na pior das hipóteses, eles serão lançados no vazio eterno.

Para os cristãos, a Páscoa tem papel central: Jesus morreu na cruz pelos pecados dos homens, mas retornou do mundo dos mortos – como prova da vida eterna que espera os que têm fé. A isso se acrescentam imagens do inferno e do purgatório, que teria também função purificadora. Para o futuro se espera a volta de Jesus, que irá fundar o reino da paz na Terra, após o Juízo Final. Depois dele, os fiéis entrarão na eternidade dos Céus.

Já na crença islâmica o falecido é imediatamente confrontado com seus bons e maus atos e recebe uma sentença provisória que lhe indica o que o espera no dia do Juízo, após a chegada do Messias: o paraíso ou o inferno. O período de permanência em suplício para muçulmanos que pecaram, mas se arrependeram, é limitado. Até a “audiência final”, os mortos descansam em uma espécie de estágio intermediário, do qual existem diversas descrições. Profetas e mártires são exceção: vão direto para o paraíso.
De forma completamente oposta a essas três doutrinas religiosas, a morte não tem nada de definitivo para as duas religiões orientais universais, o hinduísmo e o budismo. Ela é ponto de partida para o renascimento na Terra com uma outra forma. Para o hinduísmo, o renascimento pode ocorrer tanto em uma forma positiva de existência – como homem ou animal – quanto em uma existência sofredora em um dos vários infernos do Além, no reino do deus da morte, Yama. O objetivo do hindu religioso é escapar do eterno ciclo de morte e renascimento e chegar a um dos paraísos divinos. Budistas também anseiam por abandonar o ciclo de renascimento – mas admitem saber pouco sobre o local para onde vão após a morte. O nirvana (ou a iluminação, segundo os antigos textos da doutrina) não é compreendido pela razão. E, nesse caso, admitir ignorância pode ser um passo em direção à sabedoria.


Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/no_limite_da_vida.html

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